Programa municipal, mantido com recursos do SUS, já conseguiu produzir quase três mil prontuários em 5 anos
Atendimento médico realizado na última terça-feira no Largo do Pará (Carlos Sousa Ramos/AAN)
A van estaciona no meio na praça. Lá de dentro saem barracas e mesinhas. Aquele é o Consultório na Rua. E os pacientes, que chegam, um a um, são pessoas humildes, que moram nos canteiros ou coretos, envolvidas em cobertores encardidos. Pouca gente imagina. Mas o serviço - mantido há cinco anos em Campinas com recursos do Sistema Único de Saúde (SUS) - já produziu nada menos que 2.800 prontuários. E o número, apesar de chocante, nem revela o tamanho real. Muitos adolescentes, adultos e idosos - acolhidos e socorridos - nem constam nos registros oficiais. Eles não se identificam. Deprimidos, não conservam. Depois do atendimento, partem. O programa mantém, na cidade, duas equipes fixas de assistência, que se revezam em pontos fixos ou alternados. Há, em cada uma, médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem, assistente social, terapeuta ocupacional e psicólogo. Elas circulam pelo Largo do Pará, Praça Bento Quirino, Largo do Pará, imediações do albergue municipal. E passam ocasionalmente por ruas e praças da periferia que servem como abrigos improvisados. Mas o trabalho vai além da praça. O programa envolve profissionais da própria Rede de Atendimento Psicossocial do Município. O serviço se encarrega do encaminhamento e acompanhamento dos assistidos em unidades de Saúde da rede municipal de Saúde. E a ação nas ruas, garantem os protagonistas, vale muito a pena. De olhos marejados, os atendentes reconhecem que, muitas vezes, são rejeitados ou tratados com grosseria. Mas todo o esforço vale a pena quando um morador de rua os recebe bem, os abraça, mostra esforço para deixar o vício e mudar de vida. A coordenadora do programa, Alcyone Januzzi, conta que a assistência prestada é um serviço lento, paciente, que implica principalmente na conquista da confiança do morador de rua. “Neste tempo todo, perdemos muita gente. Pessoas que se negavam a deixar os canteiros, ou que nunca se livraram das drogas. Alguns morreram. Mas tivemos a alegria de ver pessoas que, há anos na sarjeta, abandonaram o álcool”, diz. Para a técnica, no entanto, o maior prêmio da equipe é conquistar, a cada dia, o respeito dos campineiros, que antes viam o morador de rua como um sujeito desocupado, consumidor de droga, arruaceiro. “A cultura do cidadão vai mudando. Hoje a maior parte das pessoas já sabe que o morador de rua é uma pessoa doente, depressiva, que nunca teve acesso aos serviços da rede pública”, fala. O sucesso do programa, segundo a própria Alcyone, se deve muito à atuação dos chamados “redutores de danos”. São agentes contratados pelo serviço, que se colocam em contato com os moradores de rua, ouvem histórias, participam de rodas de conversa, organizam atividades recreativas. Antes de entrar ou depois de sair da barraca médica, o assistido se ajeita na calçada, canta, dança, bate palmas, faz batuques. “É um trabalho que acolhe gente”, resume Alcyone. Largo do Pará Na manhã de terça-feira, quando o Consultório na Rua atendia pacientes no Largo do Pará, a caravana foi visitada pela médica Thaís Machado Dias, que hoje trabalha como supervisora de estágios na Faculdade de Medicina da Unicamp. Ela conta que, ao encerrar a residência médica, participou durante dois anos do serviço. E a médica chegou às lágrimas quando se reencontrou com os velhos amigos. Thaís disse que participar do Consultório contribuiu demais para seu próprio aprimoramento profissional. “Eu tive a chance de conhecer, nas praças, um número enorme de pessoas que precisavam de ajuda”, disse. Parodiando um poeta, ela explicou a razão de ter feito parte do grupo. “Depois de ver, não se pode desver”, disse. Na sua opinião, a cidade não pode fazer de conta que não é responsável pelos moradores de rua.