NO CAMBUÍ

Comerciantes fazem mutirão para auxiliar acumulador

Grupo se une para remover toneladas de materiais recicláveis e recuperar a casa de antigo morador do bairro

Isadora Stentzler/ [email protected]
05/11/2023 às 11:20.
Atualizado em 05/11/2023 às 11:20
Os comerciantes do Cambuí alugaram caminhões para remover os materiais recicláveis acumulados durante anos por Francisco Rocha, que é morador antigo do bairro (Divulgação)

Os comerciantes do Cambuí alugaram caminhões para remover os materiais recicláveis acumulados durante anos por Francisco Rocha, que é morador antigo do bairro (Divulgação)

Um grupo de sete comerciantes do Bairro Cambuí se uniu para ajudar o catador de recicláveis Francisco Rocha, de 60 anos, o Kiko, que vive em uma casa na Rua Olavo Bilac. Após passar por perdas na família e sofrer ameaças preconceituosas, Rocha já não conseguia mais trabalhar como antes e acabou deixando em casa todos os recicláveis que recolhia. A situação levou o espaço em que vive a ficar abarrotado de materiais descartados. Agora, o grupo de comerciantes o ajuda a retornar à vida que tinha antes.

Há algumas semanas, os recicláveis foram colocados na parte lateral da casa, sobrepondo-se ao telhado. A medida foi tomada para esvaziar a fachada e permitir que o grupo começasse, aos poucos, a retirar os materiais. No sábado (4) pela manhã, a reportagem do Correio Popular esteve na casa de Rocha e pelo menos seis pessoas passaram pela sua casa a fim de prestar auxílio. Eles juntavam as latinhas em grandes sacolas (bags). No dia anterior, contaram, já havia sido retirada uma caminhonete abarrotada de latinhas para serem vendidas.

Além disso, separavam os recicláveis a fim de que Rocha possa vendê-los e arrecadar dinheiro para o próprio sustento. A sensibilização vem de anos, porque Rocha é um morador antigo no Bairro. Aos oito anos, ele foi adotado por uma família que vivia ali, o que lhe proporcionou acesso às melhores condições de estudo. Quando perdeu a mãe, em 1991, e depois o pai, em 2001, ele se viu sozinho e sem apoio.

Manteve por algum tempo o trabalho em uma grande empresa do município, até deixá-la para se dedicar ao conserto de utensílios para revenda. Aos poucos, tudo o que juntava da rua foi se acumulando na casa. Alguns vizinhos o xingavam, jogavam lixo no seu terreno e chegaram até a arremessar uma latinha contra a sua cabeça. Mais de uma vez, conta Rocha, o vidro do seu carro foi quebrado por pedradas. Tudo isso fez com que ele, arredio, se isolasse do mundo e permanecesse junto dos recicláveis, que já não conseguia mais sair para vendê-los.

O engenheiro responsável pela retirada dos entulhos, que também é um dos comerciantes que presta apoio a Rocha, André Antonio Golveia Santos, de 47 anos, conta que, apesar da ajuda, há muito preconceito que ronda a história de Kiko. "Mesmo sabendo que estamos ajudando, alguém o denunciou, mas ele está sendo acompanhado, estamos auxiliando. Vamos conseguir uma moto para que ele volte a vender as sucatas e nos comprometemos em retirar os entulhos e a pintar toda a sua casa", explica Santos.

A denúncia a que ele se refere foi divulgada pelo vereador Paulo Gaspar (Novo) na terça-feira (31 de outubro) por meio das suas redes sociais, após contato de um morador do prédio que fica em frente à casa de Rocha. Na postagem, o vereador chamou a situação de absurda. "Em pleno Cambuí, morador acumula lixo até o telhado. Estamos tomando as medidas cabíveis", escreveu.

Segundo Santos, o lixo só estava no telhado porque o grupo concentrou os entulhos na parte lateral da casa, a fim de que fossem recolhidos. "Mas tem gente que o chama de louco", conta Santos. "Ele não é louco, só está precisando de ajuda após tudo o que passou". Durante esse período de limpeza, Santos está alocado numa sala comercial, para que a casa inteira seja desinterditada.

O comerciante disse que funcionários da Prefeitura também estiveram lá, mas apenas fizeram fotos. Toda a retirada dos entulhos tem sido paga pelos comerciantes que alugam caminhões e caminhonetes. Concentrado na limpeza, Rocha não falou muito com a reportagem, apenas consentiu com as falas de Santos.

De acordo com a Prefeitura Municipal de Campinas, a Vigilância Sanitária já foi acionada e o Centro de Saúde Guanabara assumiu o caso. A equipe de saúde mental deve fazer uma abordagem ainda nesta semana.

Acumuladores

Segundo a psicóloga, mestre em Psicologia Clínica e da Saúde, Hosana Maria Siqueira, o ato de acumulação compulsória é uma patologia que afeta de 2 a 3% da população mundial. O que caracteriza uma pessoa acumuladora é a necessidade de adquirir e de guardar objetos e até mesmo animais, ambos em excesso.

"Só que não é como um colecionador", explica. "É uma guarda de itens de uma maneira desorganizada, que entulha o ambiente, que torna, às vezes, o ambiente até insalubre, inutilizável. Outro aspecto é que, diferente do colecionador, o acumulador tem muita angústia só em pensar em se desfazer desses itens. E quando alguém fala disso, essa angústia é maior ainda. O acumulador costuma ficar muito constrangido, porque ele tem consciência da acumulação. E aí ele acaba se afastando das pessoas, dos amigos, dos pais para se manter dentro daquela zona que, emocionalmente, ele se sente mais protegido", pondera.

Muitas vezes, aponta a psicóloga, os primeiros sintomas de acumulação aparecem na adolescência e vão se agravando conforme o tempo. Para ajudar pessoas nessas condições, ela aponta que é preciso uma rede de apoio profissional e de amigos onde, sobretudo, não haja julgamento.

"E essa rede de apoio, tanto profissional quanto de familiares e amigos, é que vai ajudando no reconhecimento do problema, estimulando, inclusive, a aceitação da ajuda profissional para que essa pessoa, esse acumulador, consiga se desvencilhar dessa compulsão. E para isso é muito importante, como toda doença emocional, que se evite julgamentos. Normalmente, o julgamento, ao invés de ajudar, faz com que essa pessoa crie uma resistência ainda em reconhecer", aponta.

Em relação a tratamento, ela considera o mais adequado a terapia cognitivocomportamental, como suporte para lidar com a situação. Dependendo do caso, também é necessário o uso combinado de antidepressivos.

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