SUSTENTABILIDADE

Com horta orgânica, dona Neusa distribui solidariedade

Muitos dos legumes, verduras e frutas que ela planta são doados a imigrantes haitianos

Isadora Stentzler/ [email protected]
08/10/2022 às 17:08.
Atualizado em 08/10/2022 às 17:08
Neusa Silva, de 64 anos, colhe amoras, temperos verdes e pequenos pepinos de sua horta no Jardim Campineiro para, depois, montar as cestas que seriam doadas a um grupo de imigrantes haitianos na Vila Paula (Divulgação)

Neusa Silva, de 64 anos, colhe amoras, temperos verdes e pequenos pepinos de sua horta no Jardim Campineiro para, depois, montar as cestas que seriam doadas a um grupo de imigrantes haitianos na Vila Paula (Divulgação)

“Ei, Neide! Vem cá na horta”, gritou Neusa Silva, de 64 anos, segurando espécies diferentes de alface, em cada uma das mãos. Fazia Sol e ela colhia amoras, temperos verdes e pequenos pepinos para separar em cestas que seriam doadas a um grupo de imigrantes haitianos na Vila Paula. Para Neide, que na verdade se chama Edna dos Santos, Neusa separou dois pés de alface. Não demorou para que a vizinha atravessasse a rua e entrasse na horta que Neuza mantém há mais de 10 anos na Rua José Cleber da Silva, no Jardim Campineiro, para pegar os legumes. 

Edna entrou pelo portão trajando uma roupa de ginástica e logo foi ao pé de amoras, arrancou uma das frutas, levou à boca e esperou Neuza juntar os legumes para lhe entregar. “Faz um ano que acompanho o trabalho da Neusa. Temos uma conexão desde o primeiro momento que a gente se viu. Pego alface, coentro, maracujá, quando tem, acerola... Minha mãe é acamada, tem problema nos ossos, então, também pego ervas para fazer chá: capim santo, erva cidreira… e isso aqui é uma mão na roda. É tudo de bom”, disse, pegando, além das alfaces, beterraba e tempero verde.

Neusa, que mantém a horta orgânica, é uma senhora franzina de quase 1,60m. Tem uma voz rouca e uma energia que diz tirar da natureza. Ela é natural do Mato Grosso, não se recorda se é o do Sul ou não, e veio para Campinas na década de 1960 com a família. Conta que nasceu embaixo de um pé de café e, desde cedo, teve o gosto pelo trabalho na terra. 

Quando foi morar no Jardim Campineiro, o bairro ainda não era regularizado e muitas casas foram construídas ao lado do rio que contorna o bairro. A escola onde foi alfabetizada era longe e as merendas eram feitas no fogão a lenha, naquela época. Também não havia eletricidade e a água que usavam para beber vinha do próprio rio. Depois da alfabetização, Neusa não estudou mais. O que aprendeu sobre a natureza e como lidar com as plantas foi com a mão na terra. 

Há cerca de 10 anos, Neusa conta que foi iniciado o processo de regularização da área e as pessoas que viviam ali ganharam casas populares, sendo realocadas. Com a saída delas, as casas que ficavam à beira do rio foram destruídas e o espaço ficou ocioso. Foi nesse contexto que Neide viu a oportunidade de criar uma horta orgânica que atendesse não apenas ela, mas todo o bairro. 

Naquela época, ela já havia perdido o marido e trabalhava fazendo bicos de limpeza e de servente de pedreiro. A paixão, no entanto, pairava sobre a terra. 

“Eu já plantava com alguns vizinhos japoneses e, quando vi esse terreno, comecei a produzir aqui, porque era perto de casa. Aos poucos, as pessoas começaram a me trazer mudas e a horta foi crescendo. E ‘contaminei’ todo mundo para fazer o mesmo. Eu dei aula para esse povo porque ninguém sabia mexer com nada, não. E agora, eles têm as próprias hortas também. Aqui, tem jabuticaba, manga, amora, acerola, laranja, mamão, abacaxi, almeirão, alface, tamarindo, cenoura, beterraba, pepino, colorau, erva doce, maracujá, espinafre, abacate, coentro, bananeira, romã, hortelã, ameixa, cebolinha, salsa, além de mais de 30 remédios para nós desfrutarmos”, disse, referindo-se às ervas.

Na pandemia da covid-19, quando começou a receber pessoas pedindo pelos chás, Neusa tomou a iniciativa de percorrer as ruas levando folhas das plantas de casa em casa, ensinando para quê e como usar. As ervas, diz, aumentam a imunidade e podiam ser aliadas na luta contra o vírus.

Tudo o que é produzido ali é doado não apenas ao bairro, mas também a comunidades vizinhas e para quem solicita. Neuza não nega que também vende, mas mal sabe tabelar os valores. Em muitas das vezes, o preço fica a critério de quem leva. O que ela pretende com a área é transformar a região por meio do plantio e da alimentação saudável.

“A natureza gosta de mim e eu gosto dela. Nós somos unidas. E eu não preciso de adubo, nem de veneno. Não dá um bicho nas minhas plantas. Ninguém rouba e ninguém mexe. Eu não passo fome e nem preciso comprar nada. Só me faltam arroz e feijão, que pego no mercado. Mas olha: o resto tem aqui e serve para muitas pessoas comerem”, frisa.

Neusa calcula que a horta ocupa o espaço onde antes estavam 10 das casas irregulares que foram retiradas. Ela não sabe mensurar em metros quadrados. 

Hoje, com a ampliação da horta, ela conta ainda com a manutenção do plantio e a proteção da área por meio do Programa Hortas Urbanas – plano de segurança alimentar mantido pela Prefeitura de Campinas – e dos vizinhos que lhe entregam novas mudas.

Neusa passa todos os dias na horta. Ela sobrevive com o apoio dos filhos, em uma casa a poucos metros de distância da horta. Daquele espaço, ela diz tirar vida para si, além de distribuir vida para os outros. 

“Você viu que deu uma tempestade bem grande em Minas Gerais, só de gelo, né? Você viu que teve um tornado que destruiu tudo? Agora, por quê? Entra debaixo do chão e procura o que está acontecendo. Vai lá em cima e vê o que está acontecendo. Anda no meio do planeta e vê o que está acontecendo. Não está tendo oxigênio para nós. E quanto mais as pessoas plantarem um verde, uma planta, um pé de manga, um pé de laranja, uma árvore de flor, de fruta, não vai servir só pra nós, servirá também para os pássaros, para as borboletas. Viva a natureza. Plante uma semente, molhe e espere ela crescer e, depois, desfrute”, sentencia. 

Quando a reportagem saiu, Neusa voltou à horta. Precisava terminar os kits que iria doar na região e, de novo, voltou a arrancar cebolinhas, tomates, pequenos pepinos e mais amoras, colocando-os em cima de uma mesa de madeira onde receberiam o último cuidado antes de chegar a quem precisa.

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