canabidiol

Cinco pais de Campinas conquistam habeas corpus para plantar maconha

Objetivo é ter salvo conduto para extração do canabidiol para fins medicinais

Isadora Stentzler/ [email protected]
19/06/2022 às 09:54.
Atualizado em 19/06/2022 às 09:54
Especialistas explicam que a cannabis medicinal contém o tetra-hidrocanabinol (THC) em doses infinitamente menores que a presente na maconha utilizada no fumo, e não vicia (Ricardo Lima)

Especialistas explicam que a cannabis medicinal contém o tetra-hidrocanabinol (THC) em doses infinitamente menores que a presente na maconha utilizada no fumo, e não vicia (Ricardo Lima)

As sucessivas trocas de medicação em tratamentos que não resultavam em avanços para o filho com Transtorno do Espectro Autista fizeram o pai Marcelo entrar em uma busca solitária pelo uso medicinal da cannabis. O menino Lucas, diagnosticado aos 2 anos de idade com o nível três da doença, convivia com autolesões, incapacidade de fala e dependência total. A preocupação do pai era garantir uma vida digna à criança, o que só conseguiu há quatro anos, quando enfrentou a ilegalidade para plantar maconha e extrair o óleo para tratar o filho. "Para a sociedade, é uma coisa normal, mas hoje ele consegue usar o banheiro sozinho, tem consciência de que pode escovar os próprios dentes. O fato de dar o comando, ele entender aquilo que está sendo passado e conseguir executá-lo é uma vitória excepcional", afirmou o pai. "A cannabis deu esse norte. Eu tenho muito que caminhar sobre a situação do autismo, mas o primeiro passo foi dado."

Em maio deste ano, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo conquistou um habeas corpus para Marcelo, que lhe garantiu salvo conduto para o plantio e extração do canabidiol em sua casa. Segundo a ativista Angela Aboin, de Campinas, outras quatro famílias já tiveram esse direito garantido no município, mas o percurso moroso e a luta contra a ilegalidade ainda são desafios para quem vive nessas condições.

Busca por tratamento

O pai, que tem 43 anos, pediu para não ter as identidades do garoto e da família reveladas, por isso, a reportagem adotou nomes fictícios. 

Logo após o diagnóstico de espectro autista, quando Lucas tinha 2 anos, Marcelo se sentia angustiado. "Ele começou a regredir na questão comportamental, na condição cognitiva, social. Percebemos que ele precisava de um medicamento, pois tinha episódios de agressão e automutilação. Tomou vários psicotrópicos. Porém, essas medicações têm um 'efeito rebote', que é contrário ao indicado e causa um efeito inesperado."

Foram pelo menos 10 anos com remédios de baixa eficácia até que Marcelo optou por iniciar uma busca solitária por remédios alternativos. Ele encontrou pesquisas que apontavam benefícios do canabidiol para o espectro autista e se matriculou na primeira turma do curso Cannabis Medicinal, da Universidade Federal de Campinas.

Sem recursos para dar ao filho a medicação adequada, ele recorreu à ilegalidade. "A alternativa que busquei foi o mercado ilegal, do tráfico. É uma rede secreta, de onde eu comprava o óleo. Depois, acabei conseguindo a semente e eu mesmo passei a produzir o óleo com ajuda, com treinamento. E fazendo, sei como é o processo. No mercado ilegal, eu não tinha essa segurança, poderia, inclusive, estar ofertando algo de má qualidade ao meu filho."

Um ano depois, um laudo médico garantiu que o tratamento com canabidiol era promissor e proporcionaria melhoras ao padrão do neurodesenvolvimento do adolescente. Na época, Marcelo chegou a conseguir junto à Associação Brasileira de Apoio Cannabis (Abrace) a compra legal do medicamento, mas os altos valores e a demora na entrega comprometiam o tratamento e ele voltou a produzir o óleo para o filho na própria casa. 

Em uma conta simples. Pela Associação, cerca de 30 miligramas do óleo custavam, por mês, R$ 350, mais o frete, de R$ 90. No mercado ilegal, esse valor era reduzido para R$ 250. Já na produção caseira, as despesas totalizam R$ 150 apenas em produtos para a terra, um valor que garante a manutenção das plantas no ano. 

O processo de extração também é simples. São usadas apenas as flores da maconha, em uma espécie de infusão com álcool de cereal. Após a evaporação do álcool, o extrato é misturado em azeite ou óleo de coco e dado por via oral à criança. 

Foi nesse período que ele encontrou a ativista, também mãe de autista, Angela Aboin, do grupo Mãeconhas do Brasil, que auxilia famílias na busca pela legalidade em todo o País. Em 2020, o caminho que ele estava percorrendo, ela já havia traçado, orientando-o a procurar a Defensoria Pública. "Eu estava com um pouco de medo. Caso não conseguisse o habeas corpus, eu ia viver na ilegalidade. É meu filho! Eu assumiria esse risco para mantê-lo. A sociedade e o Estado não podem privar isso de mim, que é proporcionar uma qualidade de saúde para o meu filho", frisa Marcelo. "Esse extrato está salvando vidas, está dando oportunidade de viver. Só o fato de meu filho não se automutilar, ter paciência, prestar atenção, se socializar, ter o cognitivo mais expressivo é um ganho. E outra coisa: tenho certeza que vou ver meu filho falar."

Rede de apoio

A ativista Angela Aboin, que é fisioterapeuta, traçou o mesmo caminho anos atrás, sendo até denunciada à polícia por tráfico de drogas por plantar maconha. Ela também vê melhorias na pequena Maria Luiza, desde os três anos de idade. 

"Os ganhos de imediato foram o sono e o olhar mais concentrado." Hoje, a criança tem 9 anos e, segundo a mãe, diminuiu a agressividade, desenvolveu a fala, a contactação e a interação. "Ela tinha recomendação de uso de capacete e camisa de força para ficar em casa devido às crises. Hoje, vai à escola, tem dificuldades no processo de inclusão, próprias do autismo, mas está num nível muito melhor."

Angela buscou a Defensoria Pública em agosto de 2017. Seu caso só teve habeas corpus concedido em fevereiro de 2019 e, todo ano, precisa ser revisto pela Justiça. 

Segundo a fisioterapeuta, encarar a ilegalidade para plantar e extrair o óleo é um caminho escolhido por muitas famílias diante dos altos custos da medicação. "É uma guerra declarada. Acho que há um entendimento de que é mais fácil plantar maconha e assumir que você a cultiva na sua casa do que você encarar a sociedade e ser respeitado como uma família de autista. O direito do autista não existe. Acham que não se deve investir, que é problema seu. Falta não só empatia, mas respeito às leis. Muitas pessoas não conseguem enxergar que, através de uma planta, tem uma medicina. Quando a polícia chegou aqui em casa, com mandado de busca e apreensão, eu falei: eu prefiro encarar o presídio do que a minha filha, o manicômio. Porque a gente, como adulto e com capacidade plena, consegue analisar os riscos. Mas uma pessoa autista, muitas vezes perde não só a identidade dela, como a liberdade." 

A fisioterapeuta contou com apoio de uma rede internacional para obter as sementes e fazer as primeiras extrações. Foram consultados pesquisadores da Holanda, Israel, Estados Unidos e Texas.

Hoje, Angela auxilia famílias a buscarem o apoio legal para a própria produção. Ela já ajudou 18 famílias, algumas de outros Estados. Desse total, nove são da Região Metropolitana de Campinas e cinco de Campinas - todas estas, com vitórias garantidas pela Justiça.

Importações

Atualmente, segundo levantamento da empresa Kaya Mind, que acompanha o setor no País, mais de 53 mil brasileiros têm autorização da Anvisa para importar remédios que usam a planta como base, além de 30 mil que realizam o procedimento com associações.

O relatório mapeou empresas que atuam com a cannabis para fins medicinais. Hoje, há 995 produtos derivados da cannabis que podem ser importados por pacientes no Brasil, a maioria tem como forma farmacêutica a tintura e o óleo.

A liberação para a importação foi dada em 2015 pela Anvisa, valendo-se apenas de prescrição médica. Naquele ano, a agência recebeu 896 solicitações; já em 2020, foram 19.120 pedidos. Ou seja, um aumento de 2.031% no período de cinco anos. 

Habeas corpus 

"O habeas corpus não é relacionado diretamente a uma questão criminal, no sentido de que a pessoa cometeu um delito, mas é um instrumento pra garantir a liberdade da pessoa, dela poder realizar o plantio, o cultivo e a extração do óleo. É como se a gente tivesse se antecipando à atuação do Poder Judiciário", explica o defensor público que atuou no caso de Marcelo, Artur Rega Lauando.

No pedido de habeas corpus, Lauando alegou que o óleo produzido artesanalmente a partir da planta contém os mesmos componentes dos medicamentos importados, já autorizados pela Anvisa. O pedido contou com o relatório do agente Marcos Barbieri Gonçalves, do Centro de Atendimento Multidisciplinar (CAM) da Defensoria, que avaliou a situação do adolescente. 

Para o defensor, lidar com a ausência de leis específicas compromete o atendimento de quem precisa dessas medicações, algo que considera uma omissão do próprio Estado. "O grande problema não é atuarem na ilegalidade, eles não estão afrontando a lei, acho que, nesse caso, é uma ausência de lei. O artigo 28 da Lei de Drogas diz que é proibido a posse e o cultivo, mas na própria lei há algumas ressalvas. O problema é que essas ressalvas não são devidamente regulamentadas. Então, é uma falha, no meu entender, do Poder Executivo e da Anvisa em atender aos anseios dessa população."

Não vicia 

Para a médica especializada nesse tratamento, Maria Tereza Jacob, a prescrição da base de canabidiol aparece após um longo histórico de tratamentos falhos, que não propiciaram nenhuma melhora significativa ao paciente. Para ela, o preconceito e a desinformação são os principais motivos para o atraso na discussão do tema. 

"A sociedade precisa entender a diferença entre o remédio e o produto usado para fumar. A cannabis medicinal pode até conter o Tetra-hidrocanabinol (THC), mas com doses infinitamente menores que a presente na maconha. Não vicia, não dá barato e ninguém vai usar com fins recreativos", detalhou.

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