Com várias formações distintas, atualmente ela se dedica à prática do trabalho social e ao Clube Gourmet de Campinas
Leitura de um livro de Paulo Coelho despertou a atenção para o Caminho de Santiago de Compostela: “das últimas duas vezes eu caminhei por 31 dias, um após o outro, parando somente para dormir e comer” (Arquivo Pessoal)
Maria Célia Carmona Maciel é uma mulher com múltiplas formações, como Pedagogia, Direito e Administração Hoteleira. No entanto, atualmente, mesmo sem se considerar uma chef, ela se dedica à gastronomia liderando o Clube Gourmet de Campinas. Mensalmente, o grupo produz uma série de receitas do mundo todo. A cada dois anos, elas são compiladas e publicadas em um livro.
A convite do presidente-executivo do Correio Popular, Ítalo Hamilton Barioni, Célia Maciel falou sobre a sua trajetória pessoal e espiritual. Ela, que já teve a oportunidade de peregrinar pelo Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha, contou como foi a inspiração, preparação e realização dessa jornada de reflexão interna e espiritual com 800 quilômetros de percurso.
Mãe de três filhos, Célia tem a educação e a formação das crianças e adolescentes como uma das prioridades. Adepta do Método Montessori de Ensino, ela já atuou e atua em instituições que desenvolvem trabalhos social, como a Associação Anhumas Quero-Quero (AAQQ), que atende 500 crianças em situação de vulnerabilidade em Campinas, e o CISV, organização internacional que estimula jovens a conhecerem e respeitarem culturas até então desconhecidas. Célia conta que os próprios filhos se tornaram "cidadãos do mundo" a partir dessa vivência.
Acompanhe a seguir os principais trechos da entrevista:
Conte-nos um pouco sobre a sua infância. A senhora é de Campinas mesmo?
Eu nasci em Campinas, mas meus pais vieram de São Paulo junto com a minha irmã, que havia nascido por lá. Aqui, meu pai comprou uma loja que vendia partituras musicais chamada Casa Santa Cecília, que ficava ao lado do Conservatório Carlos Gomes. Ele já trabalhava com música em São Paulo.
E esse deslocamento para Campinas aconteceu em virtude de uma oportunidade de crescimento profissional ou ele procurava por uma vida mais tranquila?
Acho que as duas coisas. Ele se deu muito bem trabalhando com comércio, se encontrou como comerciante. Os músicos compravam muitas partituras na época. Hoje, em virtude das máquinas de fotocópia, isso acabou. Ele também vendia instrumentos musicais, de reco-reco a piano, discos de vinil e fitas cassete. Ele vendia muito porque ele investia bastante em publicidade. Ele teve lojas em várias ruas de Campinas, incluindo a conhecida Casa Carlos Gomes, e emvários municípios do interior paulista também. Em São Paulo, ele montou um atacado que contava com várias Kombis que distribuíam álbuns para todo o interior do Brasil.
Ele teve o próprio selo fonográfico, não?
Sim, o Carmona Discos, que vem de seu nome, Pedro Carmona. Mas tudo isso acabou muito cedo, pois meu pai faleceu muito jovem, aos 50 anos, em 1984.
Enquanto isso a senhora realizava os seus estudos aqui em Campinas?
Sim. Eu estudei no Colégio Sagrado Coração de Jesus, que, à época, era no centro da cidade. Depois eu fui para a PUC-Campinas e cursei Pedagogia, porque eu realmente queria muito ser professora. Após o curso, eu fundei uma pré-escola no Cambuí e a mantive por seis anos, mas depois eu cansei. Não me adaptei ao mercado. A minha filosofia era apenas trabalhar com professoras já formadas em Pedagogia, ainda que na época se aceitasse o magistério, algo que hoje não existe mais. Porém, como a pré-escola não era de ensino obrigatório, as minhas concorrentes faziam tudo de qualquer jeito, trabalhando com babás, por exemplo. Ou seja, os meus custos eram muito mais altos. Ainda hoje é possível observar várias distorções nesse setor, com escolas sem profissionais devidamente qualificados.
A senhora tem uma grande admiração pelo Método Montessori de Ensino. Conte-nos sobre ele.
É parte fundamental da minha formação. Maria Montessori é uma referência, com uma história sensacional de vida. Ela foi a primeira mulher a se formar em Medicina na Itália (em 1896, após a unificação do país). Durante a ditadura de Mussolini (após romper com ele, em 1933), ela precisou se exilar (na Espanha, Holanda e Índia). Essa metodologia de ensino foi criada para as crianças que estavam internadas em hospitais, a partir de sua observação do dia a dia delas. Ela criou toda a sua metodologia voltada para crianças especiais. No Brasil, principalmente em Campinas, foi um choque quando o seu método foi implementado no Sagrado Coração de Jesus. Houve muito preconceito. E eu fui alfabetizada através dessa metodologia sem nenhum tipo de dificuldade. Aminha irmã passou pelo método tradicional de alfabetização e teve muito mais dificuldades. Hoje, a maioria das escolas da Índia são montessorianas. O mesmo acontece na Itália e nos países nórdicos. Aqui em Campinas, além do Sagrado Coração de Jesus, o Dom Barreto e o Madre Cecília seguiram por muito tempo esse método de ensino. A Escola Americana o usa até hoje.
A senhora teve outras formações depois da Pedagogia?
Eu sou muito curiosa. Por conta disso, fiz muitos cursos nas mais diversas áreas do conhecimento, mas não foi logo de cara. Depois que eu vendi a escola, eu me dediquei bastante aos meus três filhos e acabei ficando mais em casa. Posteriormente, eu cursei Direito e Administração Hoteleira, esse último curso no Centro Universitário Senac. Também prestei consultoria para vários restaurantes e hotéis. Mais recentemente, eu me formei em Alta Gastronomia pelo Instituto Gastronômico das Américas (IGA). Na atualidade, eu sou presidente do Clube Gourmet de Campinas, onde um grupo de amigos se encontra mensalmente para cozinhar. Temos sempre um tema anual. Neste ano, são países. Um país é escolhido e é realizada uma pesquisa. Tudo o que é preparado se refere à culinária daquela nação. O clube existe há mais de vinte anos e foi formado por chefs de cozinha. Hoje, é constituído por pessoas que se interessam por gastronomia e gostam de cozinhar. Eu mesmo não sou chef de cozinha. Eu sempre digo que sou cozinheira, pois para ser chef é preciso ter trabalhado numa brigada de cozinha por uns dez anos e ter essa experiência do dia a dia. Eu gosto de cozinhar, mas cozinho mais pra família e amigos.
Como funciona o clube? Existe uma pessoa que coordena os trabalhos ou cada um faz o seu prato como achar melhor?
Temos uma diretoria, formada por três pessoas, que coordena todo o grupo. Hoje, ele é composto por 24 membros, mas quatro deles estão afastados no momento. As mensalidades são recolhidas dos sócios pela diretoria e temos um orçamento para cada jantar, com o vinho, a água, as outras bebidas etc. Pagamos o aluguel do Bouquet Garni, em Sousas, e mais três funcionários para nos ajudar com as necessidades do evento. Tudo isso é administrado pela nossa tesoureira, que também é uma das diretoras.
O grupo publica todas as receitas em livros?
Sim. A cada dois anos. E no papel mesmo, com receitas e fotos de todos os jantares que foram realizados durante os dois anos anteriores à publicação.
Os associados se voluntariam para realizar as receitas?
Nós sorteamos cinco pessoas para cozinharem no mês seguinte. Marcamos uma reunião, cada um traz as suas ideias e o cardápio é definido. No caso deste ano, não há repetição do país que já foi escolhido uma vez. Às vezes, acontece de ser uma região de um país. No último jantar, por exemplos, foram somente pratos da Sicília (região da Itália). São produzidos três aperitivos diferentes: entrada, prato principal e sobremesa. Isso é obrigatório, o mínimo, mas se quiserem realizar algo mais, não há problema nenhum desde que esteja dentro do orçamento.
Além do mundo gastronômico, eu soube que a senhora também se interessa pela vida de peregrina.
Bom, há muitos anos eu li “O Diário de Um Mago”, de Paulo Coelho, e o que me chamou muito a atenção foi a descrição que ele fez do Caminho de Santiago de Compostela. Eu pensei comigo: “é impossível que alguém ande 800 km”. Esse questionamento ficou em mim. Eu fui pesquisando cada vez mais sobre o tema e, em 2011, eu decidi que faria o Caminho. Foium chamado. E me veio da mesma maneira como eu creio que chegue para alguém que quer ser um sacerdote ou uma freira, sabe? É algo que te arrebata e que fica contigo até que você se decida por fazer. No ano seguinte à minha decisão, eu resolvi realizar um pedaço do Caminho. Na verdade, eu o fiz três vezes, sendo que as últimas duas foi inteiramente. Mas para essa primeira vez, especificamente, eu me preparei física e emocionalmente, com lian gong, meditação, reiki, e adquiri todo o equipamento necessário: bota, mochila etc. Eu conversei com muita gente, continuei pesquisando e me juntei à Associação de Confrades e Amigos do Caminho de Santiago de Compostela, o que me ajudou muito na preparação. Fiz caminhadas preparatórias, como o Caminho da Fé (que sai de várias cidades de São Paulo e Minas Gerais rumo ao Santuário Nacional de Aparecida) e isso me ajudou bastante, pois é preciso bastante planejamento. Das últimas duas vezes eu caminhei por 31 dias, um após o outro, parando somente para dormir e comer.
E por que da primeira vez a senhora não percorreu o Caminho todo?
Eu pensei que 800 quilômetros era muito, então eu percorri apenas 300 quilômetros. De León até Santiago de Compostela. Isso foi em 2012. Quando eu acabei, eu pensei “por que eu não fiz o caminho todo? Eu tenho de fazê-lo inteiro”. Aí, eu voltei em 2015 e fiz os 800 quilômetros de Saint-Jean-Pied-de-Port, na França, do outro lado dos Pireneus, até o final. E é assim: você faz o seu caminho e cada caminho é único. Você não é obrigado a andar uma determinada quantidade de quilômetros por dia. Você caminha o quanto quiser. Há albergues por todo o percurso do chamado “Caminho Francês”, que é o mais percorrido. Ele é muito bem estruturado, em especial nos últimos 300 km. São vários os caminhos, mas esse foi o que eu percorri em 31 dias, peregrinando entre 20 e 32 quilômetros por dia. Há muitos vilarejos ao longo da rota e cidades maiores que têm toda a estrutura necessária para os caminhantes.
Como funciona a estadia nos albergues?
Existem os albergues públicos (geridos pela administração pública - governos ou autarquias), os paroquiais (geridos por instituições religiosas, associações e outras organizações sem fins lucrativos) e os particulares. Há albergues cujos quartos são coletivos e onde dormem até setenta homens e mulheres, com um banheiro que é coletivo. Quanto à alimentação, existem muitos bares e restaurantes e eles servem um menu peregrino, que é constituído de uma entrada, que pode ser uma salada ou uma sopa, um prato principal e uma sobremesa, tudo porum valor único. A refeição vem acompanhada de uma garrafa de vinho e outra de água. Inclusive, há uma frase conhecida: “com pão e vinho, se faz o Caminho”.
Ao final do Caminho se ganha um certificado ou algo do gênero?
Sim. O Cabildo Metropolitano da Catedral de Santiago de Compostela emite um certificado para o peregrino que comprova que ele realizou o Caminho, porém esse certificado só é entregue se ele caminhou, ao menos, os cem últimos quilômetros.
E o componente da espiritualidade? É tudo muito intenso ao longo do Caminho?
O Caminho é muito intenso e há muito de espiritual nele, porque, de fato, você acaba realizando ao longo dele um encontro consigo mesmo. Quem faz o Caminho acaba tendo muitas reflexões pessoais. O maior presente que uma pessoa pode ganhar nessa experiência é a oportunidade de realizar esse encontro sem ter nenhum tipo de preocupação, exceto a de acordar para mais um dia de caminhada, pois a gente não sabe pra onde vai, o que vai encontrar, onde vai dormir, o que vai comer... e as coisas vão acontecendo naturalmente. Essa é a magia. O Caminho é mágico.
E aquele turíbulo (objeto litúrgico utilizado para queimar incenso em cerimônias religiosas de igrejas cristãs) gigantesco na entrada da Catedral? É fato que ele era usado para melhorar o mau cheiro dos peregrinos de outros tempos?
Bom, há várias teorias sobre o assunto. Uma delas é que, antigamente, nos primórdios, os peregrinos eram pessoas comuns e não contavam com roupas próprias para a caminhada, não contavam com tênis, mochilas, enfim. Eles andavam, simplesmente, com os seus chinelos. Inclusive, ao longo do caminho foram construídos diversos hospitais para curar aqueles que adoeciam. Eles comiam o que lhes era dado e dormiam ao relento, em estábulos. São Francisco de Assis, por exemplo, fez duas vezes o caminho nessas condições, ou seja, as pessoas ficavam meses peregrinando. Muitos desses lugares hoje são hotéis, mas na época eram hospitais de peregrinos. Há uma edificação imensa dessas em frente à Catedral de Santiago de Compostela e que hoje é um grande hotel. Muitas vezes, esses peregrinos chegavam doentes e malcheirosos. Segundo a tradição, esse turíbulo o maior do mundo.
Dizem também que há ervas especiais nele?
Na verdade, é incenso, mas algumas fontes dizem que sim. Ele é conhecido também como “botafumeiro”. É um defumador comum, como os que são usados em missas, mas em uma escala muito maior e que tem o objetivo de levar mais rapidamente as preces aos céus. Um desses incensários, inclusive, foi roubado pelas tropas de Napoleão durante a invasão francesa na Espanha, no início do século 19, e não se sabe até hoje o seu paradeiro.
Em 2022, a senhora saiu de Portugal rumo a Santiago de Compostela. É outra vertente do Caminho?
Isso. É o chamado “Caminho Português”. É um caminho que sai de Lisboa, porém eu saí do Porto e fui até Santiago em uma rota de cerca de 220 km. E uma coisa interessante é que na Catedral de Santiago existe uma porta que se abre somente quando o dia de Santiago Maior (25 de julho), o apóstolo, cai em um domingo. Em 2021, um dos anos da pandemia (de covid-19), isso aconteceu. É o chamado “Ano Santo Compostelano”. Santiago é o padroeiro da Espanha. Os espanhóis são muito católicos, eles gostam muito de fazer a peregrinação nesses anos, pois é realizada uma grande festa na cidade. No caso da porta, é interessante. Quando você passa por ela, você recebe uma indulgência (na doutrina católica, é, em resumo, a absolvição da pena devida pelos pecados anteriormente cometidos), que pode ser tanto para você quanto para alguém que tenha falecido. Eu disse para mim mesma que ia fazer isso para o meu pai. No entanto, como era impossível viajar para a Europa nesse período, o Papa Francisco ampliou este prazo para o ano de 2022, então foram dois anos com a porta aberta. Assim sendo, eu fiz o Caminho Português e ofereci a indulgência ao meu pai. É um caminho menor, mas muito bem estruturado. Eu fiz em doze dias. Esse foi outro chamado que eu recebi.
Mudando um pouco de assunto, eu queria que a senhora falasse sobre o trabalho desenvolvido com a Associação Anhumas Quero-Quero (AAQQ).
Eu sou vice-presidente da AAQQ. É uma organização da sociedade civil que atende 500 crianças em situação de vulnerabilidade social na cidade de Campinas. Nós contamos com três unidades, uma em frente ao Parque Ecológico e outras duas no São Quirino. Nós atendemos, em unidades distintas, tanto crianças de 6 a 14 anos quanto jovens e adultos. Para adultos são fornecidos cursos profissionalizantes. Realizamos bazar para as mães e rodas de conversa, além de uma série de outras atividades. Para as crianças, o atendimento é realizado no contraturno da escola. Nós não somos educadores. Nós atendemos essas crianças dentro de um contexto social. Oferecemos aula de funk, hip-hop, balé, sapateado, culinária e muitas outras mais. São duas unidades voltadas para as crianças e uma para os jovens e adultos.
A senhora ainda desenvolve um trabalho com outra organização chamada CISV (Children's International Summer Villages - em tradução livre, Aldeias de Verão Internacionais para Crianças), correto?
Sim. Eu trabalhei durante vinte anos como voluntária no CISV, que também é uma organização da sociedade civil e que trabalha com programas educacionais para jovens e adultos no mundo inteiro. No Brasil, nós atendemos a algumas cidades. Eu trabalhei aqui mesmo em Campinas por cerca de vinte anos, chegando até a presidência nacional, no entanto, com o fim do meu mandato, eu me retirei. A ideia do CISV é promover acampamentos ou programas de intercâmbio em casas de família para que crianças, jovens e adultos entendam e aprendam com as diferenças culturais e consigam compreendê-las e aceitálas. Atualmente, a entidade existe em mais de duzentos países. Todos os anos, nas férias de janeiro e julho, esses acampamentos acontecem ao mesmo tempo no mundo todo. Quando as crianças não estão de férias, são realizados programas locais que podem ser vistos como uma preparação para o que virá. Elas começam a fazer parte aos onze anos de idade. Foi a idade com a qual os meus filhos começaram a participar. Um deles, por exemplo, foi para a Suécia e lá ele pôde se relacionar com pessoas de doze países diferentes, convivendo trinta dias com elas. Nesse meio-tempo aconteceu uma série de atividades onde os participantes puderam aprender sobre as diversas maneiras de se viver no mundo. Esta questão do desenvolvimento da relação interpessoal é que é o mais interessante.
Quais são os critérios para participar?
Qualquer um pode. Basta se inscrever, porém é preciso lembrar que é um programa familiar. A família precisa acompanhar a criança na sua preparação. Na viagem, são quatro crianças para cada líder. Eu te digo: meus filhos foram criados para serem cidadãos do mundo e se preocuparem com o ambiente, com as diversas situações pelas quais o planeta passa e tentar compreendê-las. Eles aprenderam diversas línguas e têm amigos em todo o mundo. E sabe por que isso fica? Porque é vivência. É diferente você assistir a uma palestra. Eles vivenciaram tudo isso em várias oportunidades, já que foram várias viagens. Há pessoas que dizem que não colocam os filhos em um programa desse tipo por já viajarem com eles, mas não é a mesma coisa.O que essa organização oferece não é algo que a família pode oferecer, pois não é umpasseio. Não é turismo.
Célia, sobra algum tempo para ter hobbies com todas essas atividades que a senhora está envolvida?
Meu hobby é a caminhada. Eu adquiri gosto ao me preparar para o Caminho de Santiago. E cozinhar também é algo que eu adoro.
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