VULNERABILIDADE SOCIAL

Casal que vive em carro busca por emprego em Campinas

Após um assalto e a posterior perda da renda que sustentava a família, os dois dormem em um veículo Apollo, estacionado no Parque Via Norte

Isadora Stentzler/ [email protected]
04/11/2023 às 08:46.
Atualizado em 04/11/2023 às 08:52
O medo de animais, de humanos e das tempestades é parte da rotina diária dos dois; servidores da Assistência Social foram até o espaço e fizeram a solicitação para que o casal passe a receber o Bolsa Família (Alessandro Torres)

O medo de animais, de humanos e das tempestades é parte da rotina diária dos dois; servidores da Assistência Social foram até o espaço e fizeram a solicitação para que o casal passe a receber o Bolsa Família (Alessandro Torres)

Quando um assalto cruzou a vida de Jader Alves Martho, há um ano e meio, ele não imaginava que isso o levaria a viver com a família dentro de um antigo veículo Apollo, de 1991, rodeado por árvores e às margens da Rua Umberto Aveniente, no Parque Via Norte. Isso porque o roubo levou seu único sustento e, diante do desemprego, das dívidas e da falta de oportunidade, restou a ele e a esposa, Miriam Martins de Almeida Martho, que convive com depressão, encontrar novas formas de sobrevivência até que consigam retornar a uma vida como a que tinham antes na Rua 14 do mesmo bairro: com sala, cozinha e dois quartos para descansar.

Ao descer do carro e encontrar a reportagem, Jader não esconde a dor que o acompanha há meses dentro daquele veículo. “Eu não sei porque Deus está nos permitindo passar por isso”, lamentou mais de uma vez, com a fala embargada e cabisbaixo.

Após se formar no Ensino Médio, Jader estudou topografia e não demorou para tirar a carta de motorista na categoria E. Isso lhe rendeu a ocupação que seguiu por boa parte da vida, dirigindo caminhões pelo Brasil e até ambulâncias. Ele chegou a ter dois empregos, mas resolveu largar tudo para trabalhar como motorista de aplicativo. Jader comprou, em 2020, um veículo ano 2016. Ao lado da esposa, que trabalhava como auxiliar de limpeza, era possível manter o aluguel e as contas na casa em que moravam de aluguel, nas proximidades de onde atualmente o casal passa os dias dentro do carro.

Dos tempos como motorista de aplicativo, ele lembra que mais de uma vez fez corridas de graça para mães com filhos doentes que deixavam o hospital. Jader via e entendia a necessidade alheia, e conta que sentia o desejo de servir e ajudar.

Em 2021, o infortúnio. Em uma corrida para a região do Campo Grande, foi vítima de um assalto. Levaram seu carro, telefone, cartões e as poucas notas de dinheiro que carregava consigo. Sozinho, pediu ajuda para voltar para casa, sem saber que nesse mesmo tempo ligavam para sua esposa a ameaçando e cobrando transferências em dinheiro. “Acho que o carro era encomendado”, supõe Jader.

A situação traumática levou a esposa a entrar em depressão e iniciar um tratamento que a afastou do serviço, ao mesmo tempo em que Jader viu seu trabalho desmoronar. O medo foi tanto que ele evitou fazer um Boletim de Ocorrência na época.

Ele ainda contava com uma alternativa. Ao mesmo tempo em que trabalha como motorista de aplicativo, comprava carros antigos, arrumava e os revendia. Ele ainda possuía dois. Se não fossem tão antigos, seria possível utilizar um deles para retornar ao serviço no aplicativo, mas a plataforma exige carros mais modernos.

Os meses se passaram e as contas não fecharam. O aluguel começou a atrasar, as contas se acumularam e, sem horizonte, o casal viu a dívida atingir R$ 12 mil. Entre fevereiro e março deste ano, em comum acordo com a esposa, os dois decidiram que a única alternativa restante era ir para a rua.

“A pessoa que nos arrumou a casa não merecia ficar esperando o aluguel, sendo que a gente não conseguiria pagar. Então foi a necessidade nos fez ficar aqui”, conta Jader, escorado no Apollo.

“Escolhemos este lugar por ser o mesmo bairro onde vivíamos. Ali (aponta para um local com torneiras disponíveis para a população) tem água potável quando precisamos. Alguns vizinhos nos ajudam e trazem alimentos, porque já nos conhecem. Nos sentimos mais seguros aqui”, disse, fazendo uma longa pausa e desabafando o tamanho da dor que a pobreza e a limitação na vida lhe trouxeram. A tristeza é tão grande que eles já pensaram em fazer uma “besteira”.

Em silêncio, acompanhando toda a reportagem, a esposa consentia com cada palavra do marido, deixando apenas a angústia falar por meio dos seus olhos.

O carro está posicionado em uma área aberta, em um terreno de pedregulhos com terra, cercado e rodeado por árvores. O veículo está estacionado num canto, abaixo de algumas delas. O próprio carro tem o capô e a traseira coberta por lonas. Dentro dele é possível ver, no painel, uma bíblia e um relógio. Os bancos estão forrados por cobertores velhos. Para dormir, a esposa, miúda, deita no banco de trás, enquanto o marido, mais alto, tenta se acomodar nos dois bancos da frente.

Atrás do veículo se vê um varal estendido com roupas que Miriam lavou à mão em uma bacia. Ao lado esquerdo, uma pequena casa improvisada com pallets encostados em uma árvore dá a proteção à cadela Dora, que acompanha o casal há um ano. Do outro lado, em um barraco coberto por lonas, fica o fogão, com um botijão de gás que está por acabar, a reserva de alimentos e a geladeira que trouxeram da antiga casa em que moravam.

Nos dias de temporal, apelam a Deus por suas vidas. Nas últimas chuvas, uma das árvores do entorno caiu, felizmente, a alguns metros de distância do carro. Jader teme pelos próximos temporais, uma vez que as árvores que ficam atrás do carro balançam com força e já demonstraram que estão mais fracas.

Também causam medo os animais que cruzam entre as árvores e a maldade humana, que é vista no desdém e na falta de empatia com o sofrimento alheio.

Mais de uma vez, disse, foi impedido, com a esposa, de usar o banheiro de uma igreja que fica na esquina do local, o fazendo questionar se esse era o propósito de Deus com um templo tão grande para aqueles que o adoram. Recentemente, conta Jader, servidores da Assistência Social foram até eles. Um cadastro foi preenchido e houve a solicitação do Bolsa Família, já que não contam com nenhuma renda. Jader aguarda a consolidação da promessa para, quem sabe, sair da situação em que está. Também foi oferecida uma habitação popular, coisa que, acredita, seja impossível de conquistar.

O que ele quer mesmo é um emprego. “Quando eu trabalho, sou feliz”. E, como que querendo justificar que não merecia estar nessa condição, repetiu mais de uma vez: “eu não bebo, tenho segundo grau, estudei topografia, tenho carteira de motorista e já fui motorista de caminhão, de ambulância. Não sei por que Deus está nos permitindo passar por isso”.

Jader acrescenta: “quando a gente perde tudo na vida... é difícil. Não é necessária a riqueza, mas isso mexe com o sistema nervoso da gente. Fico clamando a Deus”.

Jader não tem celular para contato. O que tinha, a bateria quebrou. O único meio de comunicação é ir até a Rua Umberto Aveniente, no Parque Via Norte, onde ele e a esposa aguardam pelo que chamam de milagre. 

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