Por 33 anos, Victório "Alemão" Pacci foi motorista dos prefeitos de Campinas e "pisou fundo"
Victório Alberto Pacci, o Alemão, hoje com 83 anos, mostra recortes de jornal e álbum de fotografias, ao lado de sua mulher, dona Margarida: "Eu ganhava meu salário pra dirigir, e não para bisbilhotar" (Leandro Ferreira/AAN)
O Alemão chega à copa se apoiando no andador. Ele fez uma cirurgia no fêmur depois de levar um tombo feio na garagem. Ali do lado dele, a mulher Margarida, atenta, cuida de cada passo seu. O cidadão se ajeita devagarinho na cadeira, abre o velho álbum de fotografias e, emocionado, vai contando detalhes de cada história. E não falta causo. Alemão — ou Victório Alberto Pacci, de 83 anos — trabalhou durante 33 anos como motorista na Prefeitura. O homem dirigiu para nove prefeitos. E brinca dizendo que “já enterrou” sete deles. No banco de trás, lembra, também se acomodaram presidentes da República, governadores, artistas… É que as personalidades ilustres que visitavam Campinas eram recepcionadas pelo prefeito. A fama e o poder estavam ali, dentro do carrão oficial, protegidos pelo vidro fumê dos olhares curiosos de quem andava pela rua. O homem ouvia de tudo. Presenciou cenas engraçadas, tensas, espirituosas. Todo tipo de humor. Mas que o repórter curioso não fique fazendo perguntinhas “de cunho particular” sobre os prefeitos. Ele se nega terminantemente a fazer qualquer comentário jocoso sobre cada “patrão”. O profissionalismo não acabou com a chegada da aposentadoria. É um valor pessoal, algo que ele carrega até hoje: “Eu ganhava meu salário pra dirigir, e não para bisbilhotar”, atesta. Ah, tá bom. Ele admite falar sobre alguns traços de personalidade. Coisinhas que, ele sabe, não vão macular a memória de quem já foi dessa para melhor. Ele dirigiu para o Ruy Novaes, Gegero, Cury, Quércia, Lauro, Chico, Mokarzel, Magalhães, Bittar. Só Lauro Péricles Gonçalves e Jacó Bittar continuam vivos. Pisando fundo As máquinas. O homem começou com um Dauphine, levando o Ruy Novaes pra baixo e pra cima. Não era um carro imponente, mas era a “tecnologia top” da época. Depois vieram as barcas: Simca Chambord, Aero Willys, Dodge Dart, Opalão, Galaxie, Landau… Aquelas coisas: revestimento de veludo, ar-condicionado, lataria brilhando. De 1959 a 1991 ele estava lá, firme e forte ao volante. Bom, vamos ser justos. Só o Magalhães Teixeira tinha um outro motorista particular. Mas o Alemão estava a serviço da chefia de governo. Todos os prefeitos, lembra, saíam esbaforidos do gabinete, perdendo a hora do voo ou de algum compromisso. Era a chance para o Alemão fazer o que mais gostava: pisar fundo. Só um deles não permitia que ele corresse. O Ruy Novaes, cara de pouco amigos, não admitia que o Alemão pisasse forte no acelerador. “Ele não era bravo, mas falava pouco. Não se esforçava para mostrar que era bonzinho. E só olhava torto quando eu pisava mais”, fala. Eleitores na calçada Também teve outra dura. Do Adhemar de Barros, importante liderança política dos anos 1960. O governador, lembra, ocupava o banco de trás do carro oficial, em uma visita a Campinas. Alemão dirigia pela Vila Industrial. Os estudantes, com bandeirinhas na mão, saudavam a visita ilustre. A velocidade praticada não era maior que 40km/h. Mesmo assim, o Adhemar esbravejou. “Ele queria cumprimentar todo mundo que estava na calçada”, ri. “Atenção toda para o eleitorado.” Mais famosos no carrão: Guilherme de Almeida, Ulysses Guimarães, Jânio Quadros, Abreu Sodré… E fotos com todo mundo. Os registros da profissão só empatam, em número de fotografias, com as imagens de quando ele era moço, e jogava de meio-campo no Vila Nova, no Guará e em times de fazenda, aqui pela região. Volante e bola. Lá estão as duas paixões da vida do Alemão. Ditadura Lembrança ruim? Ah, sim. governo militar. Levar o presidente Costa e Silva para a inauguração de moradias populares, em Campinas, fez o Alemão descobrir o que era repressão. O carro oficial tinha batedores, fortemente armados, e ele não podia se atrever a parar na esquina. O mundo via o presidente passar, e ponto final. Aí aconteceu o incidente. Alemão deu seta, começou a fazer a conversão para a esquerda, e acabou batendo na moto de um dos batedores. O motociclista caiu, lógico. Mas o Alemão teve de acelerar, seguir o trajeto, sem olhar para trás. “Eu tive uma sensação horrível. Não consegui ver se o batedor tinha se machucado. Era um clima ruim, pesado, muito desagradável”, conta. Homenagem Fora o episódio chato, o Alemão se orgulha: ele jamais se envolveu em uma colisão. Nem riscou o carro. Talvez, diz, por isso ele tenha até recebido uma homenagem muito especial em março de 1991, quando se aposentou. O implacável Landau preto, na época a serviço do prefeito Jacó Bittar, foi “aposentado” no mesmo dia. Foi vendido pela Prefeitura, vejam só, por Cr$ 2,12 milhões. O carrão tinha 8 mil quilômetros rodados. Ah sim. Hoje, aos 83, o Alemão ainda dirige. Tem um Palio. Nestes dias com andador, “culpa da osteoporose”, quem manda no volante é a esposa Margarida. E o Alemão nem se atreve a dizer que dirige melhor que ela. Talvez, sabe-se lá, a “patroa” não seja calminha como o Chico, o Orestes, o Lauro, o Gegero, o Jacó…