SAÚDE MENTAL

Cândido Ferreira chega aos 100 anos realizando mais de 5 mil atendimentos por mês

Foco atual da instituição é a reabilitação e reinserção social de pessoas com transtornos mentais e dependência química

Daniel Rocha/ [email protected]
14/04/2024 às 10:02.
Atualizado em 14/04/2024 às 10:02
Oficineira há sete anos, Adélia Nenov Filha (à esquerda)começou a participar de oficinas do Cândido Ferreira após perder grande parte do movimento das mãos por causa de um problema na coluna: ‘quando eu cheguei aqui, mal conseguia pegar um lápis para fazer um risco, muito menos uma agulha’, conta a participante do serviço de saúde (Rodrigo Zanotto)

Oficineira há sete anos, Adélia Nenov Filha (à esquerda)começou a participar de oficinas do Cândido Ferreira após perder grande parte do movimento das mãos por causa de um problema na coluna: ‘quando eu cheguei aqui, mal conseguia pegar um lápis para fazer um risco, muito menos uma agulha’, conta a participante do serviço de saúde (Rodrigo Zanotto)

Neste domingo, 14 de abril, o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira completa 100 anos de funcionamento, a primeira instituição de Campinas a tratar e cuidar de pessoas com transtornos psiquiátricos. Em seu centenário, a unidade realiza 5,2 mil atendimentos por mês e e mantém 880 funcionários. Não há internações no Cândido Ferreira desde 2017. Atualmente, o local é destinado para vários serviços de saúde mental, sendo também responsável por diversos deles em toda a cidade. A instituição promove uma série de projetos para auxiliar na recuperação de pessoas e modificar para melhor a vida delas, como o Núcleo de Oficinas de Trabalho.

Na sede do Cândido Ferreira, em Sousas, fica um desses núcleos. Por lá, são oferecidas atividades em oficinas terapêuticas e profissionalizantes, e o mote é a reabilitação, para o trabalho, e a reinserção social de pessoas com transtornos mentais e com dependência de álcool e outras substâncias. Além disso, a ideia é gerar renda aos participantes e desenvolver estratégias de apoio à produção e à criação de produtos que são, posteriormente, comercializados por meio da loja Armazém das Oficinas.

Nos dias atuais são oferecidas quinze oficinas de geração de renda, doze no Cândido e três na Região Noroeste da cidade, para cerca de trezentos usuários da rede de saúde do município.

Adélia Nenov Filha, que é oficineira há sete anos, contou que entrou no projeto após ter um problema de coluna. Por conta disso, acabou perdendo, em grande parte, o movimento das mãos e foi se sentindo cada vez mais acuada, conseguindo se reerguer apenas depois de começar a participar da oficina de costura oferecida pelo Cândido Ferreira.

“Eu não tinha mais força para fazer crochê, e antes eu fazia as minhas próprias roupas e me virava muito bem. Devido ao problema que eu tive de coluna e as consequências dele, eu dizia que queria morrer, que eu não podia fazer mais nada. A minha filha me disse: 'mãe, vamos em frente’. Quando eu cheguei aqui (no Cândido Ferreira), eu mal conseguia pegar em um lápis pra fazer um risco, muito menos uma agulha. De repente eu já fui riscando, comecei a projetar novamente e, devagar, comecei a utilizar a máquina e aí deslanchei”, comemorou Adélia

Cristiane Costa, por sua vez, trabalha no Armazém das Oficinas, que está localizado dentro do Cândido. Ela, que faz tratamento há 24 anos, foi diagnosticada com esquizofrenia e transtorno bipolar. “Eu tenho a minha casa. Venho todos os dias, trabalho e vou embora. Por causa do projeto, hoje eu sou uma pessoa sociável, sei conversar. Graças ao trabalho eu me sinto com mais dignidade, porque o trabalho dignifica o ser humano e aqui eu sou reconhecida. Se existissem mais 'Cândidos', existiria também mais pessoas melhores. Aqui nós somos muito bem acolhidos.”

MUDANÇAS NO TRATAMENTO

A história do Cândido Ferreira é marcada pela inovação de cuidados desde a sua fundação em 1924, mas foi na década de 1980 que uma grande transformação aconteceu no mundo da medicina psiquiátrica. Após anos de luta, em 1978, o médico italiano Franco Basaglia conseguiu uma grande vitória em seu país natal com a aprovação da lei que leva o seu nome e que decretou o encerramento dos hospitais psiquiátricos por lá. À época, eram quase cem mil internados. De acordo com o médico psiquiatra e diretor técnico da instituição, Rafael Manrique, a experiência antimanicomial na Itália, com a retirada dos pacientes dessas entidades para a reabilitação na sociedade, foi uma grande referência para o Cândido Ferreira e para outras instituições brasileiras.

SERVIÇO RESIDENCIAL TERAPÊUTICO

No final da década de 1980, após uma grave crise financeira, política e administrativa, o Cândido firmou uma parceria mais estreita com o município de Campinas, uma vez que até então todo o custeio do local se dava através de doações. Em 1990, após o acordo, a instituição manteve a sua autonomia, mas ganhou força com o apoio da Secretaria Municipal de Saúde, o que, segundo Sandrina Indiani, presidente do Conselho Diretor do Cândido Ferreira, abriu o caminho para o início do processo de reforma psiquiátrica.

No ano seguinte, anos antes da portaria do Ministério da Saúde sobre o assunto, publicada em 2001, o Cândido concebeu, fora da área da entidade, a primeira “residência terapêutica”, uma alternativa de moradia para pessoas que estão internadas há anos em hospitais psiquiátricos por não contarem com suporte adequado na comunidade.

PROJETO TERAPÊUTICO SINGULAR

O Cândido ainda conta com um modelo de cuidado às pessoas com transtornos psiquiátricos, algo que nasceu dentro da própria instituição, o “Projeto Terapêutico Singular”. Atualmente, ele é utilizado em todo o Brasil como política pública voltada à área psiquiátrica.

“Antigamente havia um número restrito de profissionais para tratar os pacientes, geralmente do núcleo biomédico e alguns poucos psicólogos e assistentes sociais. Na década de 1980, com a entrada de professores e estudantes da PUC-Campinas e da Unicamp, diversificando o quadro de profissionais, foi possível olhar de outra forma para as pessoas. A partir do “Projeto Terapêutico Singular”, o trabalho passou a ser realizado especificamente para cada indivíduo, para a sua higiene, medicação e afins. E o destaque do projeto é que ele não é imposto de cima pra baixo, mas negociado com o beneficiado. Ele participa trazendo os seus desejos e as suas necessidades”, explicou o diretor técnico da instituição Rafael Manrique.

CAPS

Campinas conta hoje com 14 Centros de Atenção Psicossocial (CAPSs), lugares criados com o intuito de substituir os hospitais psiquiátricos e os seus métodos. O Cândido Ferreira administra 11 deles por meio de um convênio estabelecido com a Secretaria Municipal de Saúde. 

“O primeiro CAPS surgiu em 2000. À medida que as pessoas foram sendo desinstitucionalizadas e reinseridas na comunidade, uma série de dispositivos de saúde mental foram criados a fim de atendê-las, como a Tipologia Álcool e Drogas, os Centros de Convivência, a Geração de Trabalho e Renda e o Consultório de Rua, que realiza, dentre outras atividades, a aplicação de vacinas e anticoncepcionais injetáveis, além de coleta de exames”, comentou Sandrina.

FUNDAÇÃO E CASARÃO

Embora o centenário seja comemorado em 2024, a história do Cândido Ferreira teve o seu pontapé inicial anos antes do primeiro atendimento, ainda em 1917, quando a filha do advogado que dá nome ao lugar, Sylvia Ferreira de Barros, se sensibilizou com a precária situação de 21 pessoas que se encontravam no porão da Cadeia Pública de Campinas. Elas estavam em péssimas condições de higiene e sem nenhum tipo de tratamento, aguardando vaga para a internação no Juqueri, em Franco da Rocha, o único hospital psiquiátrico do estado de São Paulo naquela época.

De acordo com a presidente do Conselho Diretor, foi então que “Dona Sylvia fez uma vultuosa doação e um grupo de filantropos se mobilizou para a compra de uma chácara. Com o incentivo e doações de toda a sociedade campineira, o hospital começou a sair do papel, sendo paulatinamente ampliado tanto em espaço quanto em relação aos atendimentos”.

A inauguração, ocorrida em 14 de abril de 1924, aconteceu com o recebimento daqueles 21 homens que estavam encarcerados, juntos de doze mulheres, com a família Ferreira sustentando todos os gastos nos primeiros dois meses de funcionamento.

A sede do Cândido Ferreira conta ainda com um grande casarão. Restaurado em 2018, na edição daquele ano da Mostra+Sustentável, ele foi o primeiro prédio da instituição. Tombado pelo patrimônio histórico, hoje é alugado para eventos e festas, tornando-se um grande gerador de recursos para a entidade.

“Todos os prédios do Cândido Ferreira foram reformados após a década de 1990, porque até então eram chamados ‘pavilhões’, onde ficavam os internos. Eles foram ressignificados. Nós também temos um restaurante aberto ao público e os produtos vendidos na nossa loja são produzidos nas nossas oficinas, pelos nossos oficineiros, que são pessoas com transtornos psiquiátricos”, completou Sandrina.

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