De acordo com o Observatório Nacional dos Direitos Humanos, município tem o 9˚ maior número de pessoas nas ruas: 2.324
Em mais um dia ensolarado e de muito calor no Centro de Campinas, José Dias de Souza se protegia na sombra e assistia à movimentação no comércio local; o pintor chegou na cidade em 1997 e está há cinco anos na batalha para conseguir um emprego e sair dessa situação (Alessandro Torres)
Campinas é a nona cidade brasileira com o maior número de pessoas em situação de rua. É o que mostram os dados do Observatório Nacional dos Direitos Humanos, do governo federal. O órgão indica que 2.324 ocupam as ruas, calçadas e imóveis desativados da metrópole como moradia, 1,1% do total nacional. Os números, baseados no Cadastro Único (CadÚnico) de julho de 2023, no entanto, divergem do Censo da Prefeitura, que aponta haver 932 moradores pelas vias da cidade. A Prefeitura promete realizar um novo Censo, com expectativa para este primeiro semestre.
Dentre os dez municípios com maior quantidade de população de rua, Campinas é o único que não é uma capital brasileira. O grupo, composto por São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Brasília, Fortaleza, Porto Alegre, Curitiba, Campinas e Florianópolis, responde por 113.789 pessoas, 51,5% da população de rua nacional. Ao todo, no país, são 221.113 pessoas em situação de rua.
Desarranjos familiares representam 44% entre as “causas da rua”. O desemprego aparece com 38%. Alcoolismo e problemas relacionados a drogas somam 28%. Dentre essa população, 38% nasceram nas cidades onde vivem nas ruas, 57% vieram de outro município e 5% são de outra nacionalidade. No que diz respeito à escolaridade, 90% declararam saber ler e escrever. Contudo, só 2% relataram o comparecimento à escola.
Do total de moradores em situação de rua, 67% tiveram carteira assinada em algum momento da vida. O índice de moradores que atuam como catadores de recicláveis é superior ao total que atua como “pedintes de dinheiro” - 19% vivem da reciclagem e 11% como pedintes.
“Com relação ao tempo em situação de rua, a maior parte das pessoas cadastradas (60%) encontrava-se nessa situação há até dois anos. Já uma parcela bem menor (12%) caracterizava-se por viver em situação de rua há mais de dez anos”, diz o Observatório. Por fim, o estudo revelou que 93% que estão nessa situação vivem sem membros da família na rua.
DIVERGÊNCIA NOS NÚMEROS
Em meio à disparidade nos números da Prefeitura e do Observatório Nacional dos Direitos Humanos, a Secretaria de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos de Campinas informou que há “diferenças metodológicas” entre a contagem realizada pela Prefeitura de Campinas e a mensuração pelo Cadastro Único. A Prefeitura realiza a contagem por meio de uma pesquisa de campo em um único dia, com entrevistadores nas ruas de várias regiões da cidade. A coleta dos dados é feita diretamente com os moradores, com questionários fechados de múltipla escolha. Por outro lado, a aferição com o CadÚnico segue outros critérios, como a autodeclaração e inclusão de todas as pessoas que passam por Campinas e preenchem o cadastro público.
A Prefeitura também pontuou que Campinas registra uma população em situação de rua migratória, estimada entre 40% e 50%. “Isso implica que muitas pessoas que se cadastram em Campinas se deslocam para outras cidades, mas não atualizam seus cadastros devido à validade de dois anos do registro.”
NAS RUAS DA CIDADE
O Correio Popular constatou pessoas em situação de rua que habitam dentro de veículos, dormem ao relento em estacionamentos de supermercados e se acumulam em frente às lojas na região da Catedral. As histórias relatadas à reportagem são um misto de sonho por um novo emprego e a convivência com “o roubo de comida” praticado entre os próprios moradores.
“Está piorando, acumulando muita gente de rua. Os albergues estão lotados, então prefiro ficar na rua. Após a pandemia a situação ficou descontrolada”, disse José Marcos, de 39 anos, que vive nas ruas da cidade há dois anos. Ele faz bicos como pintor.
Tiago Brandão, de 29 anos, é barbeiro de profissão e procura emprego. Ele saiu da capital paulista há 11 meses e, desde então, vive em Campinas. “Eu me separei da mulher. Tenho um filho de sete anos e outro de quatro meses que não vi e não conheci. Quero melhorar de vida, arrumar um 'trampo' digno”, falou. “Ficamos na rua mesmo. Nos abrigos são quatro pessoas por quarto, você deixa suas coisas lá e quando volta elas já sumiram. É melhor ficar aqui na rua”, lamentou.
Fábio de Carvalho, de 43 anos, é nascido em Campinas. Ele não escondeu o hábito da “cachaça”, utilizada para tirar a dor por conviver com o ombro fraturado. “Passo a noite aqui e tomo umas cachaças. Ela tira a dor. Não gosto de abrigo, porque a comida não é boa como em um restaurante. Larguei da minha esposa e hoje tenho nove filhos", afirmou o homem que já foi açougueiro de um supermercado da cidade por cerca de dez anos. “Estou na rua por causa do meu padrasto”, revelou, mas sem entrar em detalhes.
Wilson Ferreira Ramos, de 61 anos, mora dentro de uma Kombi há seis meses junto ao seu cachorro chamado Daniel Wilker. “Esse cachorro me tirou da depressão”, contou. Ramos foi ajudado por um empresário que irá contratá-lo para ganhar R$ 2 mil mensais e morar nas proximidades da empresa, em Paulínia. “Essa pessoa me fez ter mais esperança e confiança na vida. É triste viver dessa forma”, compartilhou, acrescentando que vai levar o cachorro Wilker com ele. Todas essas pessoas em situação de rua dormem às margens da Avenida Orosimbo Maia, no estacionamento de um supermercado.
Em uma escada, na Catedral, estava o pintor José Dias de Souza, de 54 anos. Descalço e deitado, ele elogiou o abrigo onde fica, no Guanabara. O pintor veio de Brasília para Campinas em 1997. Agora, já são cinco anos que ele está na busca por um emprego. “Meu pai só gostava de me chicotear. Servi o Exército lá e vim embora pra cá”, resumiu.
SOLUÇÃO HUMANIZADA
A Prefeitura de Campinas realiza atualmente 16 políticas públicas voltadas à população em situação de rua, através de projetos como SOS Rua, Operação Inverno, Mão Amiga, Bagageiro Municipal, Operação Amigos no trecho, Distribuição de Refeições, entre outras, e se diz “focada” em abordar a problemática dos moradores em situação de rua de maneira “humanizada”. “Administração Municipal reconhece que há desafios contínuos e está comprometida em buscar soluções mais eficazes”, argumentou.
Em 2023, a municipalidade destinou R$ 12 milhões do orçamento municipal, o que corresponde a 89,1% das verbas de políticas públicas, para esse público. A estratégia, explicou a administração, é trabalhar com em três frentes: evitar que pessoas entrem em situação de rua, acolher quem vive nas ruas e auxiliar a pessoa a retornar ao convívio social.
O programa municipal de distribuição de refeições concluiu 2023 com a entrega gratuita de 254.842 “quentinhas” a pessoas em situação de vulnerabilidade, incluindo moradores de rua. As refeições são servidas sete dias por semana no almoço e jantar, na Casa da Cidadania, instalada na rua Francisco Teodoro, nº 138, na Vila Industrial, e também no Bom Prato, na avenida Dr. Moraes Salles, no Centro.
Diante dos dados explicitados pela análise do Observatório Nacional dos Direitos Humanos, a economista do Observatório da PUC-Campinas, Eliane Rosandiski, pontuou a correlação entre a crise da pandemia de covid-19 e o crescimento da população que vive nas ruas, já que a queda de empregos e da renda atingiu a realidade das famílias, em especial as que pagavam aluguel.
“Mas este fenômeno foi em 2020. Atualmente, com a redução do desemprego, outros fatores devem ser considerados, o que me leva a outro ponto. É importante olhar o perfil dessa população. Por certo, essa população está sem emprego, contudo o perfil não é de família, ao contrário, são indivíduos sozinhos, homens e numa faixa etária mais elevada, adultos mais velhos. Além disso, como a fonte desses dados é o Cadastro Único, pode-se observar que o crescimento dessa população veio acompanhado pelo crescimento do número de atendimentos por uso de drogas. Grandes capitais, e também Campinas, tendem a ter o acesso às redes de apoio (políticas públicas) mais estruturado, por isto também há de se considerar que grande parte dos moradores de rua não são nascidos no município”, avaliou.
A economista considerou, como uma das causas para o crescimento na quantidade de pessoas nessa situação, a falta de oportunidades no mercado de trabalho devido à dispensa de trabalhadores mais velhos e a substituição por funcionários mais novos.
“Porém, o perfil dos cadastrados aponta para um grupo de pessoas que está em busca de assistência social”.
Siga o perfil do Correio Popular no Instagram.