ENTREVISTA

Campinas busca retomada dos desfiles das escolas

Elizete da Leões e Cardinalli do Nem Sangue debatem o futuro da folia

Isabella Macinatore /[email protected]
11/02/2024 às 10:24.
Atualizado em 11/02/2024 às 10:24
Roberto Cardinalli, diretor do bloco, e Elizete da Silva, presidente da Escola de Samba Leões da Vila Padre Anchieta, acreditam na retomada dos desfiles de rua das escolas, paralisados após 2015 (Rodrigo Zanotto)

Roberto Cardinalli, diretor do bloco, e Elizete da Silva, presidente da Escola de Samba Leões da Vila Padre Anchieta, acreditam na retomada dos desfiles de rua das escolas, paralisados após 2015 (Rodrigo Zanotto)

O carnaval, uma das festas mais esperadas e celebradas em todo o Brasil, assume diferentes formas e significados em cada região. Em Campinas, a festividade vem passando por transformações significativas nos últimos anos. Com a retomada dos desfiles de escolas de samba, a cidade inicia 2024 com a força dessa festa tradicional retomando seu espaço junto aos tradicionais blocos de rua, que reúnem foliões de todas as idades em celebrações democráticas e cheias de energia.

Com o intuito de aprofundar nossa compreensão sobre como os blocos de rua e as escolas de samba têm fortalecido sua importância como pilares fundamentais para a continuidade do carnaval de Campinas, Elizete da Silva, presidente da escola de samba Leões da Vila Padre Anchieta, e Roberto Cardinalli, jornalista e integrante da organização do bloco Nem Sangue Nem Areia, foram convidados por Ítalo Hamilton Barioni, presidente executivo do Correio Popular, para discutir a vibrante cena carnavalesca da cidade.

Elizete da Silva nasceu e cresceu imersa no samba, na Vila Padre Anchieta, distrito de Nova Aparecida. Sua ligação com a cultura do carnaval e sua comunidade é profunda, refletindo-se em sua liderança como presidente da escola Leões da Vila Padre Anchieta. Sua dedicação e paixão pelo carnaval são evidentes em sua trajetória, marcada pela preservação das tradições carnavalescas e pelo compromisso com a comunidade.

Roberto Cardinalli é um verdadeiro filho de Campinas, com raízes na região do Bosque. Seu amor pela cidade e sua vivência moldaram sua perspectiva sobre o carnaval e sua importância para a identidade cultural de Campinas. Como integrante da organização do bloco Nem Sangue Nem Areia, Roberto contribui para manter viva a tradição carnavalesca, oferecendo uma abordagem única e inclusiva para celebrar a festa popular.

Como começou a escola de samba Leões da Vila?

Elizete: O carnaval representa uma celebração essencial para a comunidade, um momento de união e expressão cultural. Meu pai, Aparecido da Silva, mais conhecido como Cidinho, fundou a escola Leões da Vila Padre Anchieta. Antes da Leões existir, existia a escola conhecida como Batutas do Samba. Em um ano, o presidente abandonou os componentes na avenida sem fantasias e simplesmente não apareceu. Após esse momento, o grupo da bateria guardou os instrumentos. Após esse acontecimento surgiu uma demanda da comunidade por organização frente a escola que nos representasse e foi quando meu pai tomou a frente do que é hoje a Leões. A origem do nome foi uma escolha simples. Meu pai pensou em escolher um animal, e associar o leão como o rei da selva foi a escolha perfeita. E com sete anos de idade, vivenciei a formação da escola. 70% da diretoria é composta por membros da minha família, enquanto o restante são moradores do bairro. Iniciamos como pleiteantes, sem verba da Prefeitura, mas seguindo as normas estabelecidas para podermos desfilar. Desde então, temos uma história de sucesso. Ganhamos no primeiro ano e só perdemos duas vezes desde então. Em 2010, meu pai faleceu e o Miró, seu vice, assumiu como presidente. No entanto, após essa ruptura da família, levando ao distanciamento de algumas pessoas da escola e o Miró tomou a decisão de colocar a escola a disposição da minha família, em 2012 eu assumi a presidência.

Roberto Cardinalli, jornalista e diretor do bloco Nem Sangue Nem Areia, visitou a sede do Correio Popular, onde concedeu entrevista a convite de Ítalo Hamilton Barioni (Rodrigo Zanotto)

Roberto Cardinalli, jornalista e diretor do bloco Nem Sangue Nem Areia, visitou a sede do Correio Popular, onde concedeu entrevista a convite de Ítalo Hamilton Barioni (Rodrigo Zanotto)

Como começou o bloco Nem Sangue Nem Areia?

Roberto: A história do bloco Nem Sangue Nem Areia remonta à década de 1940, quando a divisa da cidade era na Estação Fepasa, um bairro industrial com muitos curtumes e abatedouros. E foi nessa época que Osvaldo Butcher, também conhecido como Bochão ou Butcher, reuniu os amigos Sinézio Jorge (Zucão), Antônio Rua (Tulé) e Manoel dos Santos (Mané) e começaram a formar o bloco, com o ímpeto de celebrar sua própria identidade e divertir os vizinhos. O nome do bloco foi inspirado no filme de comédia "Nem Sangue Nem Areia" que surgiu em resposta ao sucesso do filme "Sangue e Areia" estrelado por Tyrone Power e Rita Hayworth que foi sucesso na época. As primeiras "fantasias" foram atreladas a essa herança do bairro. Eles começaram usando carcaças de boi e improvisando instrumentos, o bloco ganhou corpo e se tornou uma tradição local. Ao longo dos anos, o bloco manteve essa essência de diversão e inclusão. No começo, o foco era realmente divertir as crianças. Era uma época diferente, onde as pessoas eram mais próximas. Já na década de 70 o bloco se transformou em uma escola de samba, e em 1976, saímos com a sensação de que o desfile estava ganho. Foi um desfile que fez sucesso, mas perdemos em aspectos técnicos, o que foi uma grande frustração para a diretoria da época. Isso levou à suspensão das atividades da escola por um tempo. A retomada como bloco só aconteceu em 2008, quando alguns artistas e colegas jornalistas da cidade conversaram sobre a revitalização do Carnaval em Campinas. Foi com a ajuda de Helder Bittencourt (sambista, músico e compositor falecido em dezembro de 2013), autor do bordão "Alegria é coisa séria" que conseguimos esse feito. O único pedido de Helder, que frequentava o bloco Nem Sangue Nem Areia quando criança, foi trazer de volta o bloco como parte dessa retomada. Em 2009, saímos pela primeira vez como bloco e marcou o início do segundo momento do bloco na história e desde então só houve a suspensão devido à pandemia, e já retomamos as atividades em 2022.

Quais os desafios enfrentados na organização de uma escola de samba? 

Elizete: O trabalho é duro e envolve muita dedicação. Em 2015, por exemplo, também tomei a decisão que iríamos encerrar nossas atividades por conta de frustrações em relação a investimentos e à estrutura disponível para escolas de samba. Enfrentamos muitos problemas, principalmente com a população que tinha resistência ao carnaval. Muitas vezes, a festividade é vista apenas como uma festa sem valor cultural, o que é um equívoco. É uma manifestação cultural séria e que demanda muito trabalho. E justamente por existirem pessoas que não levam esse trabalho a sério, que a imagem da festividade é manchada. Meu pai, por exemplo, investiu muito do próprio bolso na escola. Ele vendia várias coisas para cobrir os custos, e se não ganhássemos, a dívida era grande. Quando assumi a presidência, percebi a falta de comprometimento de algumas pessoas. E em 2015, senti um alívio quando o desfile acabou, e decidi que só retomaríamos as atividades com iniciativas do setor privado. E coincidentemente nesse ano foi quando descobrimos que os desfiles seriam suspensos. Mas por conta da demanda da população que começou com apelos pela volta dos desfiles, depois de sentirem falta durante os anos de suspensão, nós saímos com um bloco de rua em 2019. Hoje, nossa bateria tem 28 integrantes fixos e contamos também com a presença de 70 batuqueiros que nós formamos. Claramente, todos têm famílias e trabalho, então quando podem, eles comparecem, porque todos precisam trabalhar e não podem se dedicar integralmente a bateria. E isso é um aspecto que senti muito quando assumi, vi o quanto precisamos de uma reestruturação do Carnaval. Os prefeitos e toda a população precisam entender que é um trabalho sério, não apenas uma forma de garantir dinheiro. É um trabalho com a comunidade, e precisamos trabalhar em conjunto para fortalecer a cultura do Carnaval na cidade. O prefeito Dário Saad assinou um termo de compromisso com a retomada das escolas de samba e em julho o desfile será feito em homenagem aos 250 anos da cidade de Campinas. E a secretaria inclusive colocou à disposição os carros alegóricos que foram utilizados no carnaval, mostrando que para 2025 talvez seja possível retomar oficialmente ao carnaval de rua.

A Leões da Vila Padre Anchieta tomou as ruas do distrito de Aparecidinha, assumindo a forma de um vibrante bloco carnavalesco, ao mesmo tempo em que se prepara para seu retorno aos desfiles das escolas de samba (Kamá Ribeiro)

A Leões da Vila Padre Anchieta tomou as ruas do distrito de Aparecidinha, assumindo a forma de um vibrante bloco carnavalesco, ao mesmo tempo em que se prepara para seu retorno aos desfiles das escolas de samba (Kamá Ribeiro)

Quais os desafios enfrentados na organização de um bloco? 

Roberto: Para os blocos, a estrutura é muito mais simples, somos cinco diretores que se organizam para colocar o bloco na rua. Fazemos eventos para arrecadar fundos como, por exemplo, feijoadas, rifas, vendas de camisetas e eventos de escolha do samba. Quando o bloco sai, com auxílio de um carro ou trio elétrico e a bateria, tocamos também o enredo que ganhou o festival que tivemos meses antes, como se fosse uma escola de samba, onde o trajeto todo é acompanhado por esse samba-enredo. Desfilamos uma única vez no domingo antes do carnaval. Nessa última edição, no domingo (2), tivemos 4,5 mil pessoas presentes. Pela primeira vez, nossa concentração foi na praça em frente ao teatro. Nesse ano, inclusive, tivemos o batismo do Coreto, também um momento muito importante, homenageando a Dama do Samba de Campinas, Aureluce Santos, diante das autoridades da cidade. 

Qual a importância das escolas de samba e dos blocos de rua na manutenção do carnaval da cidade?

Roberto: Nós ficamos com um vácuo de 10 anos no Carnaval de Campinas, por falta de recursos, investimentos privados, entre outros fatores que fizeram com que as escolas sumissem. E as escolas puxavam o carnaval, além disso, tínhamos os clubes que atuavam como força direta da manutenção da festividade na cidade. Nós tínhamos uma efervescência cultural muito forte nesse cenário. Éramos uma referência no carnaval do interior, mas por volta dos anos 80 e 90 começou a esvaziar. E notamos que diante desses esvaziamentos, os blocos de rua surgiram como uma retomada. Para não depender apenas dos carnavais de matinê.

Como funcionam as colaborações entre as escolas de samba?

Elizete: Nós deixamos a disputa para o dia. Na época do meu pai, tínhamos provocações que eram quase piadas internas. Meu pai, por exemplo, era conhecido como um "alemãozinho folgado", porque de fato, meu pai era um "alemão", pequeno e que podíamos definir como "invocado". Mas era apenas isso, não existia rivalidade, rixas, nem nada do tipo. Nós que estamos nas diretorias, compartilhamos dessa visão. Acreditamos que fortalecer todas as escolas de samba é fundamental para o crescimento do carnaval. Sob a nova direção da Liga das Escolas de Samba estamos reforçando esse pensamento. Já participamos de três eventos com bateria unificada, algo inédito e que nos deixa mais próximo dessa ideal. Há indivíduos que veem o carnaval como algo fragmentado, mas a liderança da Liga, independentemente das escolas de samba, está determinada a mostrar que isso não é verdade. Todas as escolas se unem para fortalecer esse movimento.

Os blocos de rua possuem planos de criar uma liga?

Roberto: Existe um movimento incipiente para formar uma liga de blocos, mas ainda está em estágios iniciais. Isso se deve às características distintas de cada bairro, que influenciam na construção e identidade dos blocos. Um bloco em Barão Geraldo reflete as características desse bairro, enquanto os blocos na Vila Industrial têm suas próprias particularidades. Então temos cautela para não afetar essas características únicas de cada bloco.

Qual é a opinião sobre a profissionalização das escolas de samba e blocos visando atrair a visibilidade dos setores privados?

Roberto: Avalio que talvez isso seja uma possibilidade maior para as escolas. Já nos blocos, vejo que existe uma caracterização própria de cada bairro. E para ter a visibilidade para financiamentos precisaríamos de muita organização, o que conflita com a essência do carnaval de rua. Precisamos ter muito cuidado para não perder a "informalidade" que faz parte dos blocos. Sacrificar isso para atrair essas iniciativas iria contra nossas características.

Elizete: Nas escolas precisamos ter como base uma organização imprescindível já pré-estabelecida, porque precisamos de documentação para trabalhar com o poder público. E quando pensamos em escolas de samba, se pressupõe que há organização ao longo do ano todo. Então nós temos como sonho a profissionalização. Por conta de todo o trabalho envolvido, nós perdemos muitos músicos porque eles precisam trabalhar. Perco pessoas importantes por conta dessa ausência da profissionalização principalmente na época do carnaval, que é quando eles recebem mais demandas e ofertas de trabalho. Justamente por isso, quando organizamos eventos são antes do carnaval, porque os músicos precisam trabalhar no feriado. 

Elizete da Silva, presidente da Leões da Vila Padre Anchieta (Kamá Ribeiro)

Elizete da Silva, presidente da Leões da Vila Padre Anchieta (Kamá Ribeiro)

Como são definidos o samba-enredo e os temas?

Roberto: É uma loucura. Sempre nos sentamos numa mesa de bar e começamos a discutir sobre o bloco, e quando esse assunto surge, as coisas ficam complicadas. Porque só tivemos uma vez em que a decisão foi unânime, que foi quando o Helder Bittencourt faleceu. Naquele ano, decidimos que o tema seria uma homenagem a ele. Inclusive, o boneco que desfilamos até hoje representa ele. Como éramos todos jornalistas, ele era a peça de ligação entre a música que tínhamos e ele permanece até hoje como presidente de honra.

Elizete: Meu pai costumava dizer que as opções precisavam ser analisadas, mas o que ele queria acabava prevalecendo. Ele me explicou que as escolhas eram feitas dessa forma porque, segundo a crença dele, se a escola ganhasse, a vitória era de todos, mas se perdesse a culpa recairia sobre ele. Por isso, ele sempre preferia começar cada ano defendendo o que acreditava ser certo, pois se perdesse ele não se perdoaria. Hoje, o que eu considero predominante é a opinião do nosso carnavalesco, pois é ele quem determina se o tema pode ser transformado em fantasias e se será bem ou mal recebido.

Quais são as perspectivas para 2025?

Elizete: Para as escolas de samba, ter este carnaval fora de época é a nossa oportunidade de mostrar que estamos unidos, bem e capazes de realizar um bom trabalho com a comunidade, mesmo após anos de interrupção. Homenagear a história de Campinas é uma chance de demonstrar que podemos contar histórias e exibir nosso peso cultural.

Roberto: Este ano é atípico; é um momento para as escolas prestarem homenagem a Campinas e mostrarem que ainda há um movimento forte na cidade. Ao longo dos anos, esse movimento foi caindo no esquecimento, e é um passo importante para o retorno dos desfiles oficiais. Para os blocos, pessoalmente, acho importante reforçar esse apoio, pois pode ser um ponto de partida interessante para todos os envolvidos nessas festividades.

Qual mensagem vocês gostariam de deixar?

Elizete: O carnaval é a identidade de um povo; nossa cultura e história estão intrinsecamente ligadas a ele. Meu pedido é para que a população veja essa celebração dessa forma e não com preconceitos. Mesmo aqueles que não apreciam o carnaval devem respeitar a festividade, pois ela pode ser uma forma de união para a comunidade.

Roberto: Gostaria que todos encarassem este momento de forma pacífica, sem violência ou agressividade, mas sim para desfrutar desses quatro dias de maneira leve. Lembrar que Campinas já foi referência nessa festa, olhar para a cidade e para toda a nossa história com carinho enquanto estão nos blocos.

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