Prefeitura tem elaborado projetos que buscam garantir o desenvolvimento urbano de Campinas, associados a medidas que garantam a preservação da memória arquitetônica (Divulgação)
Quem conhece aprende a admirar e, por isso, preserva. Essa lógica, tão comum em várias áreas, nem sempre prevalece quando se fala em patrimônio histórico e cultural. Em Campinas, muitas construções que contavam a história da origem da cidade e suas muitas fases de desenvolvimento acabaram demolidas para dar lugar à modernidade. E o que sobrou, nem sempre encontra prioridade em sua preservação. Resta então, para conhecer a história, recorrer a livros e acervos fotográficos que registraram a arquitetura influenciada por tendências europeias e atendiam ao poder econômico da cidade.
Estes registros das mudanças na arquitetura de Campinas são relembrados por Ana Villanueva, arquiteta na área de restauro, professora e doutora em História da Arquitetura. Com seus relatos, é possível entender como a cidade se desenvolveu e como as atividades econômicas de diferentes épocas impulsionaram alguns aspectos dessa expansão, por meio das mudanças arquitetônicas. "Eu penso que o crescimento da cidade poderia ter sido melhor ordenado, para que as pessoas pudessem observar com mais clareza os períodos que deixavam suas marcas na arquitetura das construções. Muito foi perdido e hoje essas marcas estão meio difusas e escondidas", comenta.
Outra crítica que Ana Villanueva faz é sobre as construções atuais, totalmente desprovidas de criatividade. "A cidade tem poder econômico e muitas cabeças pensantes reunidas em suas universidades, entretanto isso não se reflete nas construções atuais, que embora sejam bastante tecnológicas, não têm atrativos, são meramente funcionais, pobres de estilo. Pelo que se vê hoje, a cidade não deixará um marco da arquitetura contemporânea", reflete. E provoca dizendo que ainda é otimista e espera que quem paga (pessoas ou empresas que contratam grandes projetos) ainda abram a mente para as inovações e deem a Campinas projetos mais interessantes.
Nesse aspecto, a secretária municipal de Planejamento e Urbanismo, Carolina Baracat, concorda que na visão mais moderna e contemporânea a arquitetura tem sido marcada por um estilo mais limpo, reto e priorizando a funcionalidade dos imóveis. "Observamos essa interferência do modernismo atrelado ao mundo acelerado que vivemos, revelado por uma arquitetura que atende a uma cidade de serviços, essa metrópole que é Campinas", diz a arquiteta que se tornou gestora pública.
Quanto ao futuro da cidade, ela revela estar otimista com as novas legislações que "devem apoiar a preservação dos patrimônios históricos e culturais da cidade, inclusive criando condições para a restauração de muitos imóveis abandonados". Uma das áreas priorizadas para a preservação e restauração é o Pátio Ferroviário, que embora seja da União, a Prefeitura tem a guarda provisória. E é nele, mais especificamente no "prédio do relógio" (onde funcionavam as oficinas das locomotivas da antiga Mogiana) que deve acontecer uma feira de decoração este ano, iniciando as obras de restauro para, futuramente, o local ser aberto para eventos públicos.
NOVAS POSSIBILIDADES
Um dos pontos principais da preservação histórica da memória da cidade está relacionada à revitalização do Pátio Ferroviário, que abriga 46 imóveis, e seu entorno. Para isso, em junho foram apresentados os projetos executivos de implantação do paisagismo e de um parque escola no local, além de um espaço de inovação para empresas de tecnologia (startups). A cessão provisória de cerca de 45% da área foi conquistada no ano passado e os projetos integram os planos de requalificação da região central de Campinas. "O parque linear proposto no plano paisagístico e o parque escola devem ser entendidos no contexto de outros que já foram lançados, como a legislação de incentivos fiscais e urbanísticos para requalificação dos imóveis do quadrilátero central, e outros que ainda virão", explicou Carolina.
A requalificação do Centro é uma das formas de preservar a memória da cidade, acredita a secretária de Urbanismo. Por isso ela salienta que "as novas legislações que oferecem incentivos tributários e flexibilizam os parâmetros urbanísticos, bem como as que possibilitam a transferência do potencial construtivo, e as zonas especiais de preservação cultural (criadas pelo Plano Diretor de 2018) poderão provocar mudanças positivas que serão sentidas nos próximos anos".
Registro da arquitetura de Campinas (Estação acervo MIS)
CICLOS DE DESENVOLVIMENTO
Para entender como Campinas chegou ao formato geográfico que tem hoje é preciso voltar na história e percorrer os caminhos do desenvolvimento desde as origens. O marco inicial da cidade é no núcleo onde está hoje a estátua-tumulo de Carlos Gomes, próximo à Basílica do Carmo. Ali tinha uma capela provisória simples, construída de taipa (terra batida), onde foi rezada a primeira missa do núcleo urbano, em 14/07/1774. A antiga capela foi transformada depois em Casa de Câmara e Cadeia e nenhuma dessas construções existem hoje. Naquela época, conta a arquiteta Ana Villanueva, a riqueza vinha das fazendas que produziam açúcar.
A fundação da "Freguesia de Nossa Senhora de Campinas do Mato Grosso" precedeu a Vila de São Carlos para só depois se transformar na cidade de Campinas. O segundo núcleo urbano do povoado nasceu no final do século 18 com a construção da Igreja do Rosário, que ficava onde hoje é o Largo do Rosário. "Mas na época era uma praça só, sem a avenida no meio, e se tornou um local de convívio dos moradores", conta a arquiteta. A igreja foi demolida entre as décadas de 1960/1970, para alargamento das avenidas Francisco Glicério e Campos Sales, previstas no plano de modernização criado por Prestes Maia.
O ciclo do açúcar, que movimentava a economia da cidade até 1850, foi substituído pelo café. Com a construção da Catedral no início do século 19 (a obra demorou 100 anos para ser concluída), os barões do café começaram a construir seus grandes casarões no entorno. Um dos imóveis da época - um dos poucos que sobreviveram - é o Palácio dos Azulejos, que abriga hoje o Museu da Imagem e do Som (MIS). Os demais foram demolidos para dar espaço às construções comerciais.
A obra da Catedral foi iniciada com a técnica de taipa de pilão e recebeu depois, na fachada frontal, a técnica de encamisamento, ou seja, a taipa foi revestida com tijolos para possibilitar uma fachada neoclássica, tendência da arquitetura da época. Essa história é contada por Ana no livro lançado ano passado, chamado "Arquitetura Neoclássica em Campinas". Essa inovação possibilitou à cidade receber a primeira olaria mecanizada do País.
Com a chegada da ferrovia, teve início outro ciclo de transformação urbana, criando dois eixos (formados pelas ruas Costa Aguiar e 13 de Maio) saindo da Catedral e seguindo até a Estação Ferroviária. Nesse trecho começaram a ser implantados comércios, bancos e outras atividades. Nesse período o estilo neoclássico começou a ser influenciado por elementos renascentistas. A construção da estação da Companhia Paulista (1872) seguiu o estilo neogótico vitoriano, seguido pelo Palácio da Mogiana em estilo neorrenascentista e o Solar do Barão de Itapura (comprado pela PUC-Campinas em 1941) foram os primeiros imóveis construídos de tijolos e que ainda permanecem na cena urbana.
A primeira fábrica da cidade foi instalada no prédio da Lidgerwood, que fabricava implementos agrícolas para as fazendas de café. O prédio, que já abrigou o Museu da Cidade, foi abandonado e neste sábado, 15, começa a ser discutido o projeto de restauro. Sua origem deu início ao processo de industrialização da cidade. Nesse período, no final do século 19, começou a se desenvolver um novo eixo urbano, iniciado pela Avenida Andrade de Neves que saía da estação e seguia até a Avenida Barão de Itapura, onde estava a Estação Guanabara, da Cia. Mogiana. Naquela área foram instalados o Hospital Beneficência Portuguesa, o Instituto Agronômico (em estilo renascentista), a Maternidade de Campinas (no espaço da antiga rodoviária) e o Colégio Culto à Ciência, conta a arquiteta e escritora.
O crescimento da cidade foi interrompido com a epidemia da febre amarela, seguida pela varíola e o aumento da lepra, provocados pela falta de saneamento urbano. O bairro Vila Industrial surgiu atrás do pátio ferroviário, abrigando casas simples de operários, instalações como matadouro e curtume, além do hospital dos variolosos e morféticos. No início do século 20, Saturnino de Brito implantou um plano de saneamento na cidade, canalizando o córrego da Avenida Orosimbo Maia.
Depois disso, no período pré-modernista - que pregava a renovação - foram feitas muitas demolições de construções históricas para dar lugar a prédios mais modernos, como o Fórum, no Largo do Rosário. "Onde havia sido um local de poder religioso virou a sede do poder civil", comenta Ana Villanuova. "E foram esses eixos de desenvolvimento que ordenaram a Campinas atual, e nos leva a pensar que daqui pra frente é preciso ser mais cuidadoso com as mudanças, buscando diálogo e equilíbrio entre o antigo e o novo, harmonizando o passado com o futuro", recomenda a especialista.