QUARESMA

Campanha da Fraternidade abordará a fome pela 3ª vez

Mobilização da CNBB teve início ontem com missa na Catedral Metropolitana

Da Redação
23/02/2023 às 08:48.
Atualizado em 23/02/2023 às 08:48

Missa da Quarta-feira de Cinzas, realizada ontem à noite na Catedral Metropolitana de Campinas, marcou o início da Campanha da Fraternidade (Kamá Ribeiro)

Pela terceira vez em 60 edições, a Campanha da Fraternidade tratará da fome no Brasil, país que embora produza alimentos em abundância ainda não conseguiu superar esse flagelo humano, que se agravou nos últimos anos. Lançada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) nessa Quarta-feira de Cinzas, a campanha teve início na noite de quarta-feira (22) com uma missa na Catedral Metropolitana, celebrada pelo arcebispo Dom João Inácio Muller. O lema bíblico desta edição foi retirado do Evangelho de Mateus: "Dai-lhe vós mesmo de comer!", em referência à passagem em que Jesus Cristo alimenta cinco mil pessoas, uma história que ficou conhecida popularmente como "A multiplicação dos pães e peixes".

A ideia é levar conhecimento sobre este problema da humanidade que volta a crescer no Brasil e também estimular a população a se conscientizar e adotar atitudes que possam amenizar em partes o sofrimento que uma parcela considerável da população brasileira está passando. "A fome, antes de ser uma condição de uma única pessoa, de um único indivíduo, expõe o pecado de uma sociedade inteira. Se alguém passa fome, é porque, de alguma forma, a sociedade tem fechado os olhos a essa pessoa", apontou o assessor eclesiástico da Campanha da Fraternidade na Arquidiocese de Campinas, padre Vilmar Biondi.

Pe. Biondi citou a pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) que apontou que mais de 33 milhões de brasileiros estão em situação de insegurança alimentar grave. O Brasil, inclusive, voltou a aparecer no Mapa da Fome das Organizações das Nações Unidas (ONU) depois de quase uma década. 

"Nós não devemos ser indiferentes com aqueles que sofrem, com aqueles que padecem - e não somente pela fome, mas por tantas outras situações de fragilidade. É o que o papa Francisco nos diz e sempre nos lembra: devemos ser uma Igreja em saída, ir ao encontro daquelas pessoas que mais sofrem, porque naquelas pessoas se faz presente Deus, se faz presente o nosso senhor Jesus Cristo", ressalta o padre. 

Se ações individuais não são capazes de acabar com a fome no país, é possível contribuir e aliviar a situação de diversas famílias mesmo com doações modestas. O Pe. Biondi citou São Tiago para lembrar que "uma fé que não tem obras é uma fé morta" e explicou que, diante disso, os cristãos precisam colocar em prática os ensinamentos de Jesus.

Este ano, a Coleta Nacional da Solidariedade, gesto concreto da campanha da Fraternidade, acontece em todas as comunidades do Brasil no dia 2 de Abril, Domingo de Ramos. Do total arrecadado, as dioceses enviam 40% ao Fundo Nacional de Solidariedade (FNS), gerido pela CNBB, ação responsável pelo atendimento a projetos sociais em todo território brasileiro. A outra parte, 60%, permanece nas dioceses para atender projetos locais, pelos respectivos Fundos Diocesanos de Solidariedade (FDS). 

"Nós temos uma missão, enquanto Igreja, de sermos sinais vivos da presença de Jesus Cristo, embaixadores de Deus nessa terra, a ponto de todos, vendo o nosso agir, vendo o nosso testemunho, o nosso esforço de correr ao encontro dos irmãos, sintam que Deus se faz presente ali naquelas pessoas, naqueles que se solidarizam, naqueles que agem com fraternidade", concluiu Pe. Biondi.

A pobreza em Campinas 

Campinas é a cidade em que o número de famílias abaixo da linha da pobreza menos cresceu na comparação com as dez maiores do Estado de São Paulo, e mesmo na comparação com o Estado como um todo e também o Brasil. O município viu em um ano, de dezembro de 2021 a dezembro de 2022, quase 15 mil famílias novas nessa situação, um aumento de 48.083 para 62.882, o equivalente a 30,77%. No Brasil, o aumento foi de 37,73% e no Estado de São Paulo, 40,22%. 

Até o último mês do ano passado, Campinas contava com 129,5 mil famílias no Cadastro Único, sendo que praticamente metade delas (49%), 62,8 mil, estavam em situação de extrema pobreza. O número de pessoas cadastradas nestas famílias em extrema pobreza era de 48%, representando 143.738 pessoas. 

No Jardim Rosália IV, a líder comunitária Ana Paula Santana Fernandes, 45 anos, vive mensalmente com uma renda de R$ 400 para três pessoas. Mesmo com muita dificuldade na própria vida, ela dedica grande parte de todos os seus dias para ajudar pessoas que estão na mesma situação, ou até pior, na comunidade em que reside. Ela disse que a fé a inspira e a motiva a praticar os atos de solidariedade, mesmo também necessitando de doações. "Deus sempre me ajudou muito e todos os dias Ele toca o meu coração quando chega um pedido de ajuda para alguma família". 

Ana Paula contou que não consegue dormir em paz sabendo que o estômago de uma criança, de um adulto ou de um idoso ronca de fome por não ter o que comer. "É muito difícil para um pai, para uma mãe... nós, que somos adultos, bebemos uma água com açúcar e até nos enganamos, mas como você acorda com uma criança falando que o estômago está doendo por estar com fome? Já vi mães falando para a criança voltar a dormir porque não tem comida. Para a grande maioria das crianças daqui, a melhor refeição é na escola. Se não tem na escola, em casa fica difícil." 

A dona de casa Raquel Santos, 43, também moradora do Jardim Rosália IV, contou que com uma renda de R$ 600 oriunda apenas do AuxílioBrasil, a qualidade da alimentação dos três filhos menores de idade diminuiu, sendo praticamente impossível conseguir comprar coisas básicas, como carne, tomate, cebola e frutas. Por isso, as doações de cestas básicas são essenciais para que a alimentação e nutrição sejam adequadas. A situação tem ficado pior a cada ano que passa.

"A pandemia (de covid-19) afetou muita gente, ainda mais nós, que somos da comunidade mais pobre, mais carente. Isso nos afetou bastante. Não podemos comprar carne hoje em dia porque o auxílio é muito pouco e realmente não dá para isso, então precisamos mesmo de doação de alimentos. É o mais importante para as crianças neste momento. Não dá para pensar em outra coisa. Não consegui até agora comprar o uniforme dos meus filhos para a escola. A minha renda é o auxílio, e dá para comida, para comprar gás - porque ainda não recebo o Vale Gás." 

A secretária municipal de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos de Campinas, Vandecleya Moro, lembrou que o combate à fome é uma tarefa compartilhada e que Estado e União contribuem ao enfrentamento deste problema com programas sociais, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), o Bolsa Família e a Renda Cidadã. Há outras estratégias desenvolvidas pelo município para enfrentar a insegurança alimentar como o Cartão Nutrir, que beneficia cerca de 6,5 mil famílias, o programa de transferência de renda municipal, o Renda Campinas, além do Banco de Alimentos, que atende, via o "Viva Vida", 35 mil famílias por mês na cidade. 

O Banco de Alimentos, inclusive, viu as doações caírem bastante na comparação entre 2021 e 2022. A média mensal de doações caiu de 79,7 toneladas para 33,5 - uma queda de 58%. Foram 957 toneladas há dois anos e 401 no ano passado. A secretária Vandecleya disse que não há, no momento, estudos que identifiquem com precisão a causa da queda nas doações, mas destacou que o agravamento da situação social é um fator de grande importância. 

"Os dados do Cadastro Único apontam que o número de pessoas em situação de extrema pobreza, de dezembro de 2021 a dezembro de 2022, cresceu 37,7% no Brasil e 40% no Estado de São Paulo. Campinas teve um aumento de 30,8% no mesmo período. Temos relatos de pessoas que antes contribuíam e agora buscam auxílio. Os produtos que o Banco de Alimento mais necessita são óleo e leite".

Dificuldade de acesso 

O engenheiro de alimentos José Tadeu Jorge, que foi reitor da Unicamp em duas ocasiões e agora atua como secretário municipal de Educação, analisou a situação e avaliou que o problema da fome no Brasil não é ligado à produção, mas sim à dificuldade de acesso de parte da população aos alimentos. 

"O país é um dos maiores produtores e exportadores de diversos gêneros. Ou seja, existe um sistema comercial, orientado pelo capitalismo, que impõe muitas dificuldades para alguns segmentos superarem a carência alimentar. Uma das formas de enfrentar essa questão é a geração de emprego e renda para essa camada da população, o que facilitaria o acesso aos alimentos. Outra frente é buscar mecanismos para a redução do custo de produção, o que reduziria o preço final do alimento ao consumidor." 

Outro ponto que Tadeu Jorge ressaltou ser importante é a conscientização da sociedade para o problema do desperdício de alimentos. "Alguns estudos indicam que em restaurantes que vendem comida por quilo, um modelo essencialmente brasileiro, o desperdício gira em torno de 10% a 15%. É muita coisa. Penso que seria positivo se o país organizasse uma força-tarefa para pensar em políticas públicas que ajudem a superar esses desafios, mas de uma maneira objetiva e pragmática." 

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