IMBRÓGLIO

Após 50 anos, empresas do DIC ainda não têm escrituras

Problema remonta à criação da área industrial de Campinas, em 1974; falta de documento de propriedade de lotes traz dificuldades às companhias

Edimarcio A. Monteiro/ [email protected]
06/07/2023 às 08:15.
Atualizado em 06/07/2023 às 08:15
Trinta e cinco empresas instaladas no Distrito Industrial de Campinas, criado em 1974, ainda não possuem escrituras dos lotes onde construíram suas unidades produtivas: falta do documento causa uma série de empecilhos (Rodrigo Zanotto)

Trinta e cinco empresas instaladas no Distrito Industrial de Campinas, criado em 1974, ainda não possuem escrituras dos lotes onde construíram suas unidades produtivas: falta do documento causa uma série de empecilhos (Rodrigo Zanotto)

O Distrito Industrial de Campinas (DIC I) continua em situação irregular quase meio século após ser criado. O imbróglio jurídico remonta a agosto de 1974, quando foi publicado o decreto municipal nº 4.527 de desapropriação de propriedades que existiam no local para a criação do espaço para atrair investimentos para o município, recebendo a instalação de 35 indústrias de grande porte, inclusive multinacionais, que hoje geram em torno de 8,5 mil empregos diretos. Porém, muitas delas até hoje não possuem a escritura de propriedade legal da área que ocupa, apenas a posse. 

O DIC I ocupa uma área de 4 milhões de metros quadrados, composta na época da desapropriação por 15 loteamentos residenciais e outras glebas, que totalizavam aproximadamente de 4,8 mil lotes, além de áreas públicas referentes aos loteamentos (ruas, praças e outros). Após uma batalha judicial de 18 anos, a Coppersteel Bimetálicos Ltda. conseguiu regularizar totalmente a sua situação, após vencer na Justiça a ação de usucapião movida contra a Prefeitura de Campinas e a Empresa Municipal de Desenvolvimento de Campinas (Emdec).

Como não cabia mais recurso, e recebeu, em junho, as escrituras de todos os 150 lotes que ocupa, totalizando uma área de 41 mil metros quadrados, e foi emitida matrícula única. Foi o capítulo final da novela iniciada em 2005, quando a empresa recorreu à Justiça para obter o reconhecimento legal de propriedade.

"Foram quase 50 anos para que a empresa conseguisse ter sua propriedade reconhecida, unificada e regularizada", disse na quarta-feira (5) o advogado Leandro Garcia de Lima, autor do processo de usucapião contra a Administração Municipal. O presidente da Associação das Empresas do Distrito Industrial de Campinas (AEDIC), Wilson Aparecido Marciano, disse que as situações das indústrias são diferentes. Sem citar números, ele disse que há empresas que conseguiram a propriedade definitiva, outras parcialmente do terreno que ocupam e outras têm apenas a posse.

Para Marciano, a situação irregular prejudica todos os envolvidos. "Qual é a empresa que vai querer se instalar no DIC ou expandir os negócios sem ter a propriedade definitiva? Isso impede a venda, a obtenção de crédito para capital de giro, para ampliação", exemplificou. "Com isso, deixam de ocorrer investimentos, instalação de novas empresas, geração de empregos e de impostos para o município", completou o presidente da AEDIC.

Ele considera que o distrito industrial tem tudo para ser uma área nobre para negócios, dada sua localização, próxima às rodovias Anhanguera, Bandeirantes e ao Aeroporto Internacional de Viracopos, o que facilita o escoamento da produção, mas as pendências legais afetam o interesse pelo DIC. Segundo Marciano, no momento, há uma força-tarefa que envolve a Prefeitura, Emdec, Companhia de Habitação Popular (Cohab), cartório e AEDIC para tentar regularizar a situação dos terrenos, mas não se arrisca a fazer uma previsão de quando sairá uma solução definitiva.

"Essa situação começou em 1974, muitos prefeitos fizeram promessa de regularizar, mas nada foi feito. Agora, há uma boa vontade nesse sentido", afirmou Marciano. O DIC foi criado pelo então prefeito Lauro Péricles Gonçalves, que cumpriu o mandato de 1973 a 1977. Depois dele, outros 12 comandaram Campinas, levando-se em conta as reeleições. Criada em 1979, entre as finalidades da AEDIC estão a regularização da área e a evolução do distrito.

RESISTÊNCIA

O usucapião foi o instrumento legal usado pelo advogado da empresa para regularizar a situação, após anos buscando uma solução amigável. "O problema é que a Emdec e a própria Prefeitura nunca passaram as escrituras, porque a primeira era devedora do Fisco e a segunda não tinha levado até o fim diversos processos de desapropriação. Ou seja, as empresas pagaram pelos lotes e se instalaram neles, mas não obtiveram as escrituras e não podiam vendê-los ou usá-los como garantia para obter empréstimos e desenvolver seus negócios, por exemplo. Tinham a posse, mas não tinham a propriedade", explicou o advogado.

O usucapião foi contestado pela Administração e rejeitada inicialmente pela Justiça por envolver o que consideravam ser uma área pública. Porém, a tese jurídica foi aceita em março de 2009, em segunda instância, pelo então desembargador Benedito Silvério Franco, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que foi o relator do processo e deu parecer favorável para uma ação da reclamante, para a qual não foi dada entrada de recurso e passou ser a sentença final.

Usucapião é o direito de posse em relação a um imóvel ou bem, devido ao uso por um determinado tempo, contínuo e incontestadamente. A lei não se aplica a imóveis públicos, ou seja, que pertençam aos municípios, estados ou União. Porém, no caso do DIC I, o desembargador entendeu que já se tratava de uma área particular, pois a Prefeitura vendeu as áreas para as empresas a partir de 1974. No caso da cliente do advogado, foi em 1994, quando o empresário Vincenzo Antonio Spedicato adquiriu a empresa que havia se instalado no distrito em 1976 para criar a indústria ainda em atividade.

CAMINHO JURÍDICO

Dessa transação comercial surgiu a indústria que hoje emprega cerca de 300 funcionários e produz fios e cabos telefônicos e elétricos para o mercado nacional e exportação. "Quando entramos com os processos, meus filhos ainda estavam na adolescência, cursando universidade. Agora os três já são formados e todos trabalham comigo na empresa. Foi uma luta imensa, mas valeu a pena", afirmou Vincenzo Spedicato.

"Após analisar um dos processos, o desembargador Silvério Ribeiro, considerado uma das maiores autoridades em ações de usucapião, e que inclusive tem obra de referência sobre este tema, foi o relator de um acórdão favorável à tese da empresa. A partir daí, todas as demais decisões foram se embasando neste acórdão e fomos ganhando todas as ações, uma a uma", afirmou o advogado. Isso porque as ações tinham de ser individuais, uma para cada lote ocupado pela empresa, que estavam em níveis diferentes de tramitação.

Após a vitória em todas, as últimas 28 escrituras foram lavradas e registradas e foi emitida uma única matrícula de propriedade. A tese de usucapião foi idealizada pelo então sócio de Leandro Lima, o advogado e ex-juiz de direito Edison Blanes. Ele não viu o recurso jurídico dar certo, pois faleceu em 2010.

"A ideia foi inédita e, inclusive, chamou a atenção da mídia na época. Entrar com uma ação de usucapião contra o Poder Público, visando obter propriedade de imóveis públicos, era algo totalmente inédito e, a priori, a Constituição Federal não permite usucapião de bem público. Porém, o Blanes argumentou que, a partir do momento em que a área havia sido desapropriada e vendida para particulares pela própria municipalidade, não poderia mais ser considerada como um bem público", explicou Leandro Lima.

De acordo com advogado, todo o processo exigiu um trabalho preliminar de grandes proporções para identificar cada lote que deveria ser objeto de usucapião, contando até com perícia judicial. Dos 150 lotes da indústria, 28 passaram por esse processo. Somente o levantamento topográfico dos terrenos levou dois anos. "Havia tantos lotes que não podiam ser transferidos porque a Emdec não tinha Certidão Negativa de Débitos (CND), naquela época, e também porque outros lotes ainda se encontravam com processo de desapropriação ainda em curso, cujas matrículas ainda tinham como proprietários diversas pessoas físicas, cujos lotes sequer tinham sido transferidos à Prefeitura", recordou Leandro Lima.

"Por isso, de posse de todas as informações decorrentes dos levantamentos feitos, entramos com ações de usucapião individuais, ou seja, promovemos uma ação para cada um dos lotes", explicou.

NOTA DA PREFEITURA 

A Prefeitura de Campinas informa que todas as ações administrativas e judiciais relacionadas à propriedade destes são analisadas individualmente. Há casos que podem envolver, além da compra original, o acréscimo de novos lotes, bem como outras especificidades, como condicionantes ambientais. A partir da análise da administração municipal, se houver mais de uma matrícula, é feita a unificação para que a empresa possa abrir matrícula no cartório.

Importante ressaltar que a Companhia de Habitação Popular (Cohab) de Campinas possui duas modalidades de regularização fundiária, de interesse social e de interesses específicos, que é o caso das empresas do Distrito Industrial de Campinas (DIC). A lei federal só permite que a regularização seja feita sem custos se for de interesse social. Nos demais, o custeio deve ser dos próprios beneficiários, que precisam procurar a Prefeitura - no caso a secretaria ou empresa pública proprietária original da área, para dar andamento a esse processo. A estimativa da Prefeitura é que cerca de 35 empresas do DIC precisem realizar essa regularização.

Vale esclarecer também que, na década de 1970, a Emdec foi criada com a atribuição de desenvolvimento de Campinas e promovia o planejamento imobiliário do município. Desde o final de década de 80, a Emdec não exerce mais essas atribuições.

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