ENTREVISTA

Aos 91 anos, Walter Vieira se preocupa com excesso de judicialização no país

Juiz aposentado analisou que volume de processos que cada magistrado tem para analisar praticamente triplicou atualmente

Manuel Alves Filho e Luiz Felipe Leite/[email protected]
01/06/2025 às 13:34.
Atualizado em 02/06/2025 às 13:18
Embora Walter Vieira tenha se dedicado durante toda a vida à área do Direito, a literatura é outra paixão do juiz aposentado; dos autores preferidos, ele cita Machado de Assis, Coelho Neto, José de Alencar, Graciliano Ramos, Jorge Amado e Clarice Lispector, além, é claro, do britânico William Shakespeare (Rodrigo Zanotto)

Embora Walter Vieira tenha se dedicado durante toda a vida à área do Direito, a literatura é outra paixão do juiz aposentado; dos autores preferidos, ele cita Machado de Assis, Coelho Neto, José de Alencar, Graciliano Ramos, Jorge Amado e Clarice Lispector, além, é claro, do britânico William Shakespeare (Rodrigo Zanotto)

A Constituição Federal atualmente está descaracterizada e a figura do juiz de garantias, autoridade responsável pela legalidade da investigação criminal e por assegurar os direitos individuais de investigados pelo Poder Judiciário, é uma "invenção" ruim para o sistema jurídico nacional. Essas são avaliações do juiz aposentado Walter Vieira, de 91 anos de idade, que foi magistrado em Sumaré, Campinas, São Paulo, entre outras cidades. Ele também é escritor e titular, desde 2014, da cadeira n˚ 34 da Academia Campinense de Letras (ACL), cujo patrono é José de Sá Nunes.

Nascido em Pederneiras-SP, onde passou parte da infância, toda a adolescência e parte da vida adulta, o juiz aposentado é filho de Francisco Vieira e da portuguesa Adelaide Ferreira Vieira. Ele cursou Contabilidade e depois Direito, mas antes foi aprovado aos 19 anos em um concurso como escrevente no Banco do Brasil. Walter Vieira trabalhou 18 anos no BB, passando pelas cidades de Pirajuí, Campinas e Bauru. Ele deixou o banco para assumir uma posição como magistrado, após passar em um concurso do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP). 

O juiz aposentado passou por várias varas de Justiça, nas áreas cível, criminal, trabalhista, eleitoral, entre outras, antes de se retirar da função. Perguntado sobre as qualidades necessárias para atuar como magistrado, Vieira respondeu de forma direta. “Para ser juiz é necessário ter bom senso, conhecimento e coragem.”

O jurista também comentou, em entrevista feita a convite do Correio Popular, sobre o alto número de processos de cada magistrado na atualidade, destacando que é um problema causado pelo alto índice de judicialização no Brasil. “A Inglaterra, por exemplo, tem menos processos do que nós aqui no Brasil. E por quais motivos? Entrar com um processo custa dinheiro, e o requerente é obrigado a ter fundamento para não ter que pagar uma multa. Às vezes até prisão, por excesso”, descreveu. 

Enquanto isso, Vieira mostrou-se um leitor ávido e grande interessado pelas obras do escritor inglês William Shakespeare. O poeta e dramaturgo britânico é um dos principais objetos de estudo do juiz, que o classificou como um “autor misterioso”. “Duas correntes intelectuais britânicas, uma de Oxford e outra de Stratford, debatiam sobre as origens de Shakespeare. Uma defendia que ele era o autor dessas obras, Hamlet, por exemplo, e outra defendia que era outra pessoa que escrevia e que utilizava Shakespeare como um pseudônimo.”

O ex-magistrado, que é casado, pai de três filhos e avô de três netas e dois netos, além de autor de três livros próprios, comentou ainda sobre outros temas ligados à literatura, como a importância das famílias participarem mais dentro do processo de formação de novos leitores incentivando as novas gerações, a necessidade de mais mulheres serem escritoras, e o papel da Academia Campinense de Letras na sociedade e como aproximar a juventude dela. Por, fim ele fez uma crítica sobre a interferência política na educação brasileira. “A educação no Brasil não pode ser ditada pela política”, pontuou.

Dr. Walter, muito obrigado por estar conosco para esta entrevista. Pode começar nos falando de suas origens? Onde nasceu e cresceu? 

Sou de Pederneiras. Fica entre as cidades de Jaú e Bauru. É a cidade também conhecida como "Pedra de Fogo". Ela foi batizada por causa da grande quantidade de pedra de fogo encontrada naquela localidade. Fiquei lá até um ano de idade e depois a minha família mudou para Jundiaí, onde permaneci até quase os nove anos de idade. Daí voltamos para Pederneiras. Era uma região de zona rural. Lembro que a cana-de-açúcar tomou conta de todas as imediações, substituindo os pés de café. Falando em café, anos depois passei no concurso de escrevente do Banco do Brasil e morei em Pirajuí, perto de Lins, onde aprendi muito sobre café. Inclusive, aqui em casa, sou eu que compro (risos).

O senhor fez todos os seus estudos em Pederneiras, mesmo? 

Na época eu fiz o chamado ensino básico, de quatro anos, e na sequência o ginasial. Na época ganhei o título de técnico em Contabilidade. Depois fiz o chamado técnico científico, no colegial. Fiz três anos e me formei, sendo aprovado no concurso do Banco do Brasil na sequência. Eu pretendia fazer o curso de Engenharia Elétrica, pois fui radiotécnico até os 18 anos, mas na minha região não tinha essa possibilidade. Para não perder tempo, fiz outro curso: Direito, em Bauru.

Houve alguma influência na família para que o senhor escolhesse curso de Direito? 

Não. Essa escolha foi praticamente um acidente de percurso. Não tinha alternativa na época, não havia cursos de Engenharia Elétrica em toda a região. Eu não pretendia, mas fiz o curso e terminei sem fazer ideia que no futuro eu seria juiz, considerando que nunca atuei como advogado antes de entrar na magistratura. 

Como foi a decisão de se transformar em magistrado? 

Tive muitos colegas de sala que prestaram concursos na área do Direito antes de mim. Um deles foi do Tribunal Regional Federal, muito meu amigo, e me aconselhou a fazer o concurso para a magistratura. Dois professores meus me incentivaram também, (diziam) que eu era um bom aluno e que gostaria da experiência. Prestei e passei enquanto eu ainda estava no Banco do Brasil.

E onde foi o início da sua carreira como juiz? 

Primeiro entrei como juiz substituto em Jaú. Depois assumi como titular em Bariri, antes de ser transferido para Sumaré. Sucedi na cidade o dr. José Geraldo Barreto Fonseca, de saudosa memória, onde inaugurei o Fórum local. Até então ele funcionava em um prédio da Prefeitura. Na época o governador era o Laudo Natel, na década de 1970. Depois vim para Campinas, onde permaneci por 18 anos como juiz. Isso na 1ª Vara Cível. Na sequência me mandaram para São Paulo, para a Vara da Família, onde permaneci até a aposentadoria. Uma história muito rica. 

Como é que o senhor estabelece a diferença entre o que é era Justiça no início de sua carreira e como ela é hoje? 

Costumo dizer que o Direito é a mosca azul. Se você é picado pela mosca azul, você vai ficar doido o resto da vida. Então, como eu fiz Direito, é algo rotineiro para mim todos os dias. Mesmo aposentado, leio e me informo muito sobre, mas reconheço que é uma área que mudou muito. A primeira coisa que mudou foi a nossa Constituição de 1988. Ela foi muito bem-feita, mesmo, e por grandes constitucionalistas, mas o tempo foi passando, novos congressistas foram eleitos, e as mudanças na Constituição foram sendo feitas. Foram tantas que ela hoje está descaracterizada. Voltando um pouco no tempo, o início do Direito organizado é a Carta Magna, assinada pelo rei inglês João Sem Terra, em 1215. Nela existiam três princípios básicos. Um deles é o juiz natural, ou seja, sorteado para julgar. Vejo que isso foi deturpado. Segundo, o devido processo legal. Isto é, o processo precisa seguir um rito, sem antecipar fases. Vejo que isso também foi deturpado. Em terceiro lugar, seguir o direito amplo de defesa. Vemos muitas pessoas sendo condenadas em vários processos onde o juiz é o investigador, o delegado, o promotor etc. Isso é um retrocesso imenso. Somando tudo, vejo que o direito vigente está ruim e muito diferente. Outro exemplo que vejo é a penalização do direito de opinião das pessoas.

Qual o limite do direito de opinião? Isso existe? 

É o seguinte. No caso de uma pessoa que é parlamentar, por exemplo, ela pode falar o que quiser, mas com responsabilidade. Os parlamentares possuem direito de opinião enquanto no exercício da função, mas, de uma forma geral, se eu ofender o prefeito Dário Saadi (Republicanos) aqui nessa entrevista posso ser processado por desacato ou por ofendê-lo. No entanto, algo curioso que observo no Supremo Tribunal Federal (STF) é o seguinte. Quando uma pessoa comete um crime durante o exercício de um mandato, ela é julgada após esse mandato. O STF está invertendo essa lógica, revogando uma tese que já dura há uns 70 ou 80 anos. Isso é um exemplo das variantes dessa distorção do Direito Penal e do sistema jurídico nacional. Ele está bastante distorcido.

Quais são as principais características para ser juiz de Direito? 

São três coisas, e fundamentais. Primeiro: você tem que ter bom senso. Segundo: você tem que saber Direito, ter conhecimento. Terceiro: você tem que ter coragem. Mas se for difícil juntar essas três coisas, tira o conhecimento jurídico. Isso assusta, não é? E aí você fica com o bom senso e com a coragem. Mas se faltar o bom senso, você tem que ter a coragem. E por que isso? Pois tem certos preceitos que você tem de aplicar e não ficar com medo do que vai acontecer, pois é uma convicção. Então, hoje, realmente, o devido processo legal está bastante alterado. Em resumo, para ser juiz é necessário ter bom senso, conhecimento e coragem.

Doutor, por um lado existe o amplo direito de defesa a qualquer cidadão. Do outro lado, há uma crítica de que a nossa legislação permite infinitas possibilidades de se postergar decisões. Como encontrar o equilíbrio nisso tudo? 

Isso é um drama muito grande, porque existe a prescrição. O que os advogados fazem? Empurram os projetos adiante até eles prescreverem. Isso se chama abuso do direito de defesa. Existe um limite para isso, com três ou quatro recursos, dependendo de cada caso. É possível apelar até ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Ou, se for uma matéria constitucional, até ao STF. E não pode passar disso. Se de um lado há abuso de juízes, vejo que existem abusos do lado da advocacia, por parte de alguns integrantes e não de toda a classe da magistratura e da classe advocatícia.

Os juízes estão sobrecarregados atualmente? Como vê isso? 

Essa questão é muito importante e muito séria. Quando eu trabalhava como juiz, tinha uma média de 4 mil processos. Hoje os colegas possuem 10 ou 12 mil, com juízes auxiliares. Isso ajuda, claro, mas no meu tempo, não. Assim como é feito hoje pelos juízes mais recentes, trabalhávamos muito, 14 a 15 horas por dia, e levávamos trabalho para casa. Isso para poder dar conta de tantos processos. É uma realidade diferente do estrangeiro. A Inglaterra, por exemplo, tem menos processos do que nós aqui no Brasil. Por quais motivos? Entrar com um processo custa dinheiro, e o requerente é obrigado a ter fundamento para não ter que pagar uma multa. Às vezes até prisão, por excesso. Vejo isso por causa do excesso de judicialização no Brasil. É um problema muito grave.

O mecanismo da conciliação é necessário para ajudar a resolver esse problema? 

Sem dúvidas. É fundamental. Quando se fala em ação judicial, se fala em vencedores e perdedores. Na conciliação isso não existe. Por isso é realmente o melhor sistema que existe. Nos países mais avançados, antes de chegar a uma decisão judicial, existem as tentativas de acordo, mas no Brasil isso é levado pouco a sério.

Qual a opinião do senhor sobre o juiz de garantias? 

Acho que é uma invenção ruim para o sistema jurídico nacional. Inclusive, os grandes juristas não querem isso também. Não sei quem teve essa ideia, mas é esquisito. O juiz precisa tomar conhecimento do fato desde o começo, e o que seria um juiz de garantia? Que garantia é essa? Garantia de defesa do réu? Isso existe desde o começo do processo. Ter dois juízes envolvidos em um mesmo tema, com visões diferentes às vezes, pode complicar ainda mais as coisas. Acho que é uma invenção desnecessária.

Como se interessou pela literatura? Qual a origem do gosto por Shakespeare? 

Gosto de literatura desde quando eu era garoto, com 14 ou 15 anos de idade. Tive bons professores de inglês e francês no curso científico. Um dos professores de língua inglesa, que tinha pronúncia britânica, insistia muito para lermos as obras literárias inglesas, e durante o colegial eu estudei literatura. O meu hábito de leitura foi criado a partir desses incentivos que tive até então. Era uma época em que não tínhamos muitas opções de leituras fora as bibliotecas. Ou seja, o que caia na minha mão eu ia lendo. Um desses livros foi escrito por Shakespeare, em uma linguagem muito difícil, datado do século 16. Foi depois disso que comecei a me interessar pela obra dele, um autor muito misterioso.

Como assim, “autor misterioso”? 

Sabe-se pouco da vida inteira dele. Duas correntes intelectuais britânicas, uma de Oxford e outra de Stratford, debatiam sobre as origens de Shakespeare. Uma defendia que ele era o autor dessas obras, Hamlet, por exemplo, e outra defendia que era outra pessoa que escrevia e que utilizava Shakespeare como um pseudônimo. O mistério todo em torno dele é muito interessante, e ele aplicou esse conceito de mistério nas obras dele. Outro ponto interessante é que ele foi um dos primeiros escritores a colocar a mulher em uma posição de destaque. Fora a penetração psicológica, ou seja, de inserir um perfil psicológico em seus personagens. Era outro grande ponto de destaque do Shakespeare como autor. Outro detalhe: era um escritor autodidata, aprendia sozinho as coisas, com leituras próprias. Ele tinha a bíblia como inspiração para suas obras. Foram dezenas de peças e centenas de sonetos criados por ele. É uma obra muito extensa e detalhada.

*Assine o Correio Popular e confira a entrevista na íntegra.

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