Dinâmica, boêmia, festeira, produtiva e com muitos planos: aos 84 anos, Ana Maria Melo Negrão será presidente da Academia Campinense de Letras durante a próxima gestão (biênio 2025-2026) (Kamá Ribeiro)
Pela segunda vez desde a criação da Academia Campinense de Letras (ACL), uma mulher assume a presidência: Ana Maria Melo Negrão, que toma posse no dia 11 de fevereiro, é escritora, pesquisadora e historiadora. Dinâmica e boêmia, aos 84 anos de idade é festeira, produtiva e tem muitos planos. Escrever um livro sobre o Cônego Dom Nery é um deles, mas ela também tem projetos para reforçar a sua gestão, como o de modernizar a academia com uma assessoria virtual, fomentar mais eventos para a cidade e tornar mais acessível o conhecimento acadêmico para o público estudantil.
Ana Negrão ocupa a cadeira número 8 da Academia Campinense de Letras desde 2013. Ela foi vice-presidente por duas gestões e tem seis livros publicados, além de participar como coautora de uma dezena deles. Com graduação em Letras Anglo-Germânicas e Direito pela PUCCampinas, conquistou os títulos de mestrado pela Unisal e doutorado em Educação pela Unicamp. Amante das artes, em especial a literatura e a música, diz ter duas paixões: a escrita e a história de Campinas, mas também circula apaixonada pela música, pela cozinha e pela máquina de costura, alguns dos seus passatempos preferidos. Confira a seguir os melhores momentos da entrevista concedida por Ana Maria Melo Negrão ao Correio Popular a convite do presidente-executivo Ítalo Hamilton Barioni.
Para começar, gostaríamos de saber sobre sua origem. A senhora é campineira?
Eu nasci em Campinas, na Rua General Osório 1535, onde hoje é o edifício Rotary Club. Ali era uma chácara que meu avô comprou a casa e o terreno em 1900, quando se casou. Naquela época, era uma região mais barata, pois o bairro mais nobre – onde moravam as famílias mais abastadas – era o Botafogo. Minha avó teve 15 filhos e meu avô era advogado, juiz e procurador da Prefeitura, mas ele faleceu com 42 anos de idade, deixando minha avó grávida de minha mãe. A família permaneceu naquele local, onde minha avó sobrevivia da venda de flores e frutas cultivadas na chácara. Minha mãe se casou e jamais quis sair dali, e foi onde eu nasci e morei até me casar.
Que lembranças marcaram sua infância na cidade?
Minhas lembranças, meus sonhos até hoje são da casa da Rua General Osório. Minha avó cultivava hortênsias no jardim e conto um pouco de minhas memórias no meu último livro, escrito durante a pandemia e lançado há dois anos. Quando estava finalizando e ainda não sabia que nome colocar, percebi que em todas as casas que eu morei a primeira coisa que eu fazia era plantar as hortênsias, tenho vários quadros delas, foi quando percebi o quanto essas memórias estavam introjetadas. Por isso ele ganhou o título “No Azul das Hortênsias”.
Onde foram feitos seus estudos iniciais?
Cursei o primário e o ginásio no Instituto de Educação Carlos Gomes. Meus pais queriam que fizesse o curso Normal, mas eu queria fazer o curso Clássico, no Culto à Ciência. Naquela época a mulher fazia o Normal, porque ela casava e tinha uma profissão, era professora, mas eu dizia que não queria nem ser normalista e nem me casar, queria estudar. Eu me insurgi e fui. Meu ídolo – e meu preceptor – era o professor Francisco Ribeiro Sampaio, o fundador da Academia em 1956. Nós éramos obrigados – mas eu fazia isso com muito prazer – nos três anos de curso, a decorar “Os Lusíadas”, de Camões, de cabo a rabo. O curso Clássico foi para mim uma realização muito grande na dimensão educacional e lançou-me para o futuro, pois me encantei com o português. Estudava-se muito, mas foi uma marca na minha vida. E o Culto à Ciência era uma escola perfeita, tanto que minha turma se reúne periodicamente até hoje.
Como se deu sua formação universitária?
Quando terminei o Clássico fui para a faculdade, inscrita em Letras Anglo-Germânicas e fui novamente aluna do professor Sampaio por mais quatro anos. Prestei concurso para o Estado e fui designada para Pirassununga, onde trabalhei no Instituto de Educação como catedrática de Português. Nessa época conheci meu marido, Pedro Antunes Negrão, que era de Itapetininga, e ele veio para Campinas junto com Zeferino Vaz, na época de fundação da Unicamp. Nos casamos, eu vim para Campinas também e tivemos três filhos. Mas eu tinha uma um desejo latente de fazer Direito, embora o português e a literatura fossem uma paixão. Assim, quando meus filhos foram para a faculdade, eu prestei vestibular de Direito e fui também, embora já fosse docente da PUC na época. Então me tornei docente e discente ao mesmo tempo
E suas especializações, foram em que área?
Ao terminar Direito – curso que fiz saboreando – eu fiz mestrado sobre Sociologia Jurídica, uma inovação na época, em São Paulo, com os Salesianos, sob a orientação do professor e escritor Antônio Gil. Depois fiz o doutorado na Unicamp e até hoje sou pesquisadora do Centro de Memória da Unicamp. Depois que me formei em Direito, acabei criando, a pedidos, o curso de Direito do Unisal em Campinas em 2001. Foi muito interessante essa trajetória.
Sua tese de doutorado também virou livro?
Meu doutorado, na área de Educação – “Infância, Educação e Direitos Sociais: Asilo de Órfãs (1870-1960)” – foi sobre a trajetória da Santa Casa de Misericórdia de Campinas, e me ative ao internato. Desde pequena, quando eu ia à missa, eu via as meninas órfãs. Tivemos em casa uma órfã, trazida por meu avô, para cuidar de várias gerações de crianças. Ela morreu em casa aos 86 anos e nunca teve um salário, o que me intrigava bastante. Na pesquisa eu entrevistei 26 egressas do internato de órfãs e suas histórias de vida me emocionaram muito, cada história daria um livro, elas passaram por coisas terríveis. Foi difícil conseguir as primeiras entrevistadas por causa do estigma, mas conforme elas iam me contando parecia que se libertavam, e iam chamando outras que me telefonavam, queriam participar da história. Foi gratificante, pois no momento que eu dei voz às estigmatizadas, elas se sentiram importantes, romperam as amarras. É o aspecto terapêutico da pesquisa.
A senhora pesquisou também a prostituição em Campinas?
Sim, um de meus livros – que acaba de se ser reeditado – é “Pernas Cruzadas, Meias Rendadas: Desvendando Histórias de Campinas (1930-1970)” – e para produzi-lo pesquisei a prostituição em Campinas nesse período. Foi quando conheci o Jardim Itatinga e os filhos das prostitutas, a maneira como eram criados, a relação de dívidas com as gerentes das casas, a questão policial, conheci todo esse contexto. Além da pesquisa, com depoimentos de 80 homens que frequentavam as casas de prostituição, que virou um livro palatável para a sociedade, nos juntamos com outras pessoas para acolher essas crianças e garantir escolaridade. Isso resultou na criação do Lar Ternura, que funciona até hoje na região do Santa Cândida.
E quantos livros já escreveu?
Como autora e também como coautora são cerca de dez livros. Entre eles destacam-se “Arcadas do Tempo: O Liceu tece 100 anos de história” (1997); “Infância, Educação e Direitos Sociais: Asilo de Órfãs (1870-1960)” de 2003; “Pernas Cruzadas, Meias Rendadas: desvendando Histórias de Campinas” (2013). “Memórias em Educação” (1999); “Trabalho e Infância” (2015); “No Azul das Hortênsias” (2022).
Está em seus planos escrever a biografia de Dom Nery?
Sim, ainda vou escrever um livro com a biografia dele, tenho esse plano e foi uma missão me dada por Dom Bruno. Tenho muitas informações sobre a vida de Dom Nery, ele foi amigo do meu avô e guardo até os seus paramentos. Apesar de ser considerado o bispo dos pobres, Dom João Baptista Corrêa Nery (1863-1920) era um político. Ele transformou o Liceu Salesiano num quartel quando a igreja perdeu o padroado, inclusive conseguiu que o Liceu emitisse as Carteiras de Reservistas E criou fanfarras, implantou a parte de ginástica sueca com pirâmides humanas e levava os alunos para desfiles em outras cidades, até na presença do presidente da República. Ele era boníssimo. Na crise da febre amarela, transformou o Palácio Episcopal em hospital. Conto algumas dessas histórias no livro do centenário do Liceu – que está na Biblioteca do Vaticano –, mas tenho muitas outras pesquisas e documentos guardados sobre ele, fez muito pela cidade.
Quais são suas paixões?
A literatura e a história de Campinas, também a música, que está introjetada em mim. Em qualquer atividade que faço, mesmo quando escrevo, tenho como música de fundo desde Beethoven, Chopin, Vivaldi, Bach, Vivaldi, Villa-Lobos, Pavarotti, Charles Aznavour, Sinatra até a nossa incrível Bossa Nova, com Tom Jobim, Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Edu Lobo. Tem também a música de raiz, pois sempre gostei de uma boemia e fui seresteira, cantei em saraus regados a vinho. Estudei violão clássico no Conservatório Carlos Gomes e depois me encantei com a Bossa Nova. Não vivo sem a música.
A ACL completa 69 anos e a senhora será a segunda acadêmica a assumir a presidência. Qual a importância desse fato?
A mulher representa hoje uma parte muito intensa da literatura nacional e internacional e ocupa cargos que antes eram destinados somente aos homens. A própria Academia Campinense, no início, não aceitava o ingresso de mulheres. A primeira mulher a ocupar uma cadeira na ACL foi Maria José de Moraes Pupo Nogueira (1913-2015), pouco mais de duas décadas após sua criação. Depois dela ingressou a jornalista Maria Conceição Tavares Toledo, que acabou se tornando a primeira presidente (1989-1990). Ela escreveu um livro relatando a origem e a história da nossa Academia. Quando me apresentaram o desafio de sair da vice-presidência para assumir a presidência, meu questionamento foi “será que vou dar conta”? Mas vejo tanta gente com mais idade que faz tanta coisa. Acho que meu DNA é bom, minha família é longeva, então assumo dia 11 para apenas uma gestão (biênio 2025-2026)
Qual a missão da Academia Campinense de Letras?
É exatamente promover a cultura, a literatura, o cultivo do idioma pátrio e compartilhar o patrimônio cultural e literário local, nacional e até internacional. Fomentar novos escritores – razão pela qual temos trazido crianças da EJA (cursos de educação de crianças e adultos a partir de 15 anos) – e manter as portas abertas para a comunidade. O que eu vejo hoje é que a literatura faz com que a pessoa entenda o mundo, se entenda no mundo e possa contribuir para a identidade local, regional e nacional. Mas essa literatura tradicional impressa está enfrentando desafios que não permitem retrocessos, devido à velocidade da informação, por causa dos avanços digitais e tecnológicos e até da Inteligência Artificial. A Inteligência artificial é uma ferramenta interessantíssima, é um avanço em várias áreas, mas é preciso ter cuidados.
Qual o novo papel da Academia diante dos desafios da era digital?
Hoje ainda existe aquela discussão questionando se as bibliotecas físicas vão sumir e se ficarão apenas as digitais. Na ACL temos muitos livros, tanto que não temos espaço físico para guardar todos dentro da Academia. Mantemos a biblioteca principal no Salão da frente e outras 16 estantes que foram acomodadas a uma quadra da nossa sede, em uma sala dentro do Sindicato dos Ferroviários da Mogiana. Nós estamos fazendo um trabalho de recuperação e seleção, com algumas doações. Eu acredito que o livro jamais vai sumir, pois toda essa tecnologia digital por si só não existe, tem sempre o homem por trás. O risco é essa geração que não vai se acostumar a folhear um livro e ficar só no superficial, no periférico. Vejo esses desafios e discutimos essa questão digital até com nossa revista da ACL “Fenix Campineira”, se deve continuar impressa – é a minha preferência porque é uma leitura mais centrada – ou se mantém digital, como um e-book. Mas na Academia temos gerações que sentem mais dificuldade no manejo digital, então o tema ainda requer discussões.
Qual o perfil dos acadêmicos em Campinas hoje?
Eu acho que para ser literato não precisa ser formado em Letras. Veja, Guimarães Rosa era um médico e foi um escritor brilhante. Então a literatura é o amor à palavra, o amor ao idioma, o amor à leitura e à escrita. A academia, desde o seu berço, abriga as mais variadas áreas do saber. Alguns, como o livro sobre a Capela Sistina do médico Gilson Barreto, virou best-seller internacional. Ele é só um dos exemplos dos mais de 20 médicos que já tivemos, e também advogados, historiadores, comunicadores que, independentemente do ramo de saber, são literatos pelo amor à literatura e pelo domínio do idioma pátrio, porque escrevem bem e são inspirados. Não adianta gostar, a escrita precisa fluir, sair naturalmente. Eu transito entre a Literatura e o Direito, e não abro mão do português. Temos na ACL, por exemplo, o dr. Walter Vieira com 92 anos de idade, é juiz aposentado e nosso decano, ele conhece Shakespeare em profundidade e escreve muito bem. Então uma academia de letras tem esse perfil, é uma casa de letras desde que essas letras sejam cultivadas pelas pessoas que amam a escrita, a leitura, escrevem bem com estilo e perfil literário, ou seja, mantenham a beleza estética do texto para encantar o leitor. O escritor se constrói. Mas na pandemia perdemos vários acadêmicos, 16 deles, ou por morte ou por afastamento em função de sequelas. Estamos recompondo os quadros.
Qual sua opinião sobre aquele boom provocado por uma leitora americana que descobriu Machado de Assis?
Se você prestar a atenção, o que elege uma pessoa a um cargo de governo? É ter influenciador. Então quem tem influenciador está feito! São desafios da modernidade. Alguém que não é brasileira leu “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, se encantou e passou a influenciar o interesse mundial pelo escritor. Como o brasileiro é muito ainda de seguir a boiada, é um povo cabeça baixa, não conhece seus direitos, o que é ser cidadão, não sabe sobre as legislações, também conhece da literatura apenas com aquele pequeno chão que recebeu na escola inicial. O brasileiro gosta mesmo do futebol, do carnaval etc. Eu não vou usar esse lugar-comum para não desrespeitar ninguém, mas nós estamos agora na moda da influência, temos influenciador para tudo.
No ano passado a ACL conquistou, pela primeira vez, verbas cedidas pelos vereadores para projetos culturais. Como está sendo aplicada?
Essa verba foi solicitada pelo Carlos Cruz. Eu fiz todos os ofícios, foi necessário fazer um plano de trabalho que orienta a aplicação dos recursos em projetos específicos. Acabei sobrecarregada para fazer esse planejamento estratégico com mais de 20 páginas e o trabalho ficou vinculado à Secretaria Municipal de Cultura e Turismo. É um dinheiro que vem carimbado, pois é direcionado ao planejamento que começou em novembro de 2024, e já financiou a cantata de Natal, e segue até novembro de 2025. Estão incluídas 11 seções literárias mensais, realização de saraus vespertinos com happy hour, rodas de prosa literária para crianças e adolescentes, palestras e outras atividades, como o subsídio para duas edições da revista Fenix. Um dos destaques será o trabalho de fomento de novos leitores, que já vinha sendo feito e agora ganhará novo reforço para ser continuado. Acreditamos ainda que essa verba poderá agasalhar um projeto para concursos de redação com alunos de escolas públicas, concurso de poesia e trovas. A contratação de uma pessoa para orientar a parte digital da academia, inclusive nas redes sociais, será outra vertente a ser trabalhada neste ano, inclusive com a abertura de um canal no YouTube para disponibilizar a gravação dos eventos que acontecem na ACL. Será uma ampliação de várias artes, em uma interlocução de muito saberes que se entrelaçam.
Há alguma coisa que a desagrada na Academia?
Eu diria que tem uma coisa que é preocupante, que é o envelhecimento dos membros. Para se tornar acadêmico a pessoa precisa ter uma história de vida, uma experiência, e nós precisamos ter gente mais nova ingressando para garantir a continuidade do trabalho. Já na gestão anterior conseguimos repor algumas cadeiras com pessoas mais novas, continuaremos trabalhando nesse sentido .
Uma curiosidade: por que a academia se chama campinense e não campineira?
A ACL foi fundada por Francisco Ribeiro Sampaio e ele colocou o nome de "campinense" para seguir o padrão linguístico, e algumas pessoas não aceitavam. Foi uma briga de jornal! O sufixo "ense" é um sufixo de naturalidade, do local onde a pessoa nasceu (amazonense, paraense, mato-grossense etc.). Já o sufixo "eiro" é mais ligado à profissão (sapateiro, porteiro, mineiro etc.). O professor Sampaio explicava que o campineiro não trabalhava nas campinas, por isso o correto era campinense, mas houve uma cisão e assim foi criada uma segunda, a Academia Campineira de Letras e Artes (Acla), e temos acadêmicos que atuam nas duas
Para encerrar, como é sua rotina e o que faz no tempo livre?
Eu gosto da vida. Para mim, escrever é imperativo, não me canso fácil, dou palestra em vários locais quando me convidam, gosto de contribuir, de receber, de compartilhar conhecimento. No tempo que sobra, pratico dois passatempos: a costura – faço minhas roupas e também as dos netos (tenho quatro), e nisso entra o tricô, pois faço lindos pullovers para meu marido – e a cozinha. Quem já experimentou diz que o meu cuscuz é ótimo! E tem a música, que me acompanha desde sempre! Meus netos dizem que eu não sou velha – e olho que já tenho 84 – porque sou alegre e sei mexer no computador.
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