ARTE

Amilar, pioneiro do cinema nacional

João da Mata, o primeiro longa-metragem produzido no Brasil, foi obra de um campineiro em 1923

Francisco Lima Neto/AAN
10/05/2020 às 10:19.
Atualizado em 29/03/2022 às 12:18

O ano de 2020 marca os 139 anos do nascimento de Amilar Roberto Alves e 79 anos de sua morte. Amilar foi quem lançou o primeiro longa-metragem brasileiro, em 1923. O feito marcou a história da cidade, teve repercussão nacional e inaugurou o primeiro ciclo do cinema campineiro. Na década de 1920, em São Paulo, Rio de Janeiro (então capital do País) e, claro, em Campinas, reinava o cinema mudo, que estava no auge. Foi nessa época que a Academia Brasileira de Letras (ABL) premiou o drama João da Mata, de autoria do campineiro Amilar Roberto Alves. A peça, de mesmo nome, já tinha estreado no Teatro São Carlos, no dia 17 de novembro de 1921, aquele construído em 1850 e demolido em 1922. Mas foi o prêmio recebido da ABL que estimulou Alves a transportar João da Mata para a tela. A tarefa era hercúlea para a época. Amilar, até então, atuava como vendedor de terras, mas não se intimidou com a empreitada. Convenceu Vitorino de Oliveira Prata, Francisco Castelo e José Ziggiatti, que se juntaram ao desafio. Os quatro se uniram e conseguiram levantar um valor respeitável para fundar a Phênix Film. No entanto, conforme narrou Eustáquio Gomes, em edição do Correio Popular de 22 de novembro de 1981, os sócios ficaram apreensivos quando Amilar adquiriu 420 metros de filme negativo e mais de 500 de positivo. "O escritor pacientemente explicou que não pensava fazer um curta-metragem, mas um filme de uma hora e meia de duração, coisa que ninguém tinha feito ainda no Brasil. E as filmagens tiveram início nos arrabaldes da cidade, em Capivari e nas velhas fazendas da região. No elenco, jovens que atuavam nos grupos dramáticos locais: Angelo Fortes, Antônio Rodrigues, Moacir dos Santos, Arnaldo Pinheiro e Luiz Laloni. Na direção técnica, Felipe Ricci. Atrás da câmera, Tomaz de Tulio", trazia trecho da publicação. As filmagens só ocorriam aos domingos, pois todos tinham seus trabalhos individuais. Os artistas e diretores tinham de carregar os cenários e todo o material necessário de um lado para outro. Eles eram levantados ao ar livre, de forma bem amadora. Eustáquio Gomes notara que a escolhida para o papel da mãe de João da Mata era uma caipira autêntica, retirada de dentro de um casebre. Era nítido que ela não tinha ideia do que estava fazendo e só queria voltar ao seu fogão de lenha. Os imprevistos eram tantos que vários metros de filmes foram inutilizados. Em um deles, Moacir Santos — que fazia o papel do Velho Lázaro — depois de uma sequência de suma importância, percebeu que o vento tinha arrancado metade de seu bigode. Conforme relato de Alfredo Roberto Alves, filho de Amilar, essa precariedade fez com que as filmagens levassem mais de um ano. O garoto tinha 17 anos na época e ajudou o pai naquela aventura inédita. Ele reunia figurantes, animais de sela, chicotes e tudo o que fosse necessário para as filmagens. Em outros momentos, fazia o papel de iluminador. "Aprendi muito e, de resto, creio ter sido uma das melhores épocas de minha vida. Andei muito de bonde e de burro, acompanhando o elenco aqui e ali. Era um bando alegre e disposto aos maiores sacrifícios. Eu, de minha parte, ia levando na flauta. Enquanto as filmagens se desenrolavam no campo, saía para caçar rolinhas, armar arapucas", relembrou em entrevista ao Correio, em 1981, aos 74 anos. O filme Na trama, um coronel — personagem de Trajano Guimarães — desvia o curso de um córrego que fazia divisa e alimentava a gleba de João da Mata. A reação é aguda e os dois partem para violência física. Temendo por sua vida, João da Mata vai passar alguns meses na Bahia, local de origem de seus antepassados. Por lá, encontra velhas escrituras que lhe davam o direito, não só sobre seu pequeno terreno, mas sobre boa parte das terras do coronel. Fica claro que tempo antes seus antepassados tinham sido expropriados. João da Mata volta para Campinas e traz consigo os documentos comprobatórios do direito de sua família àquelas terras. Além disso, descobre manchas no passado do coronel, envolvido num assassinato. Em fúria, o empresário parte para cima de João com uma arma de fogo, cena desenvolvida no clímax da história. Na briga entre os dois, o camponês acaba desarmando e matando o vilão por enforcamento, mas sem intenção. Com a chegada da polícia, o acontecido é percebido pelas autoridades, mas o delegado acaba por dar razão a João da Mata e o deixa livre de condenação. O tema central da trama é justamente o problema fundiário. Amilar conhecia a questão de perto, já que na época trabalhava comprando e vendendo terras. Honesto, sabia o quanto os pequenos proprietários eram enganados pelos coronéis e latifundiários, capazes de tudo para aumentar os limites de suas propriedades, aproveitando que os pequenos quase nunca tinham a documentação em ordem. No ano de 1923, o filme estreou no cine Rink, com grande público, antes de chegar a outras praças. O Jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em edição do dia 19 de dezembro de 1923, o classificou como um drama empolgante. O filme tinha acabado de atrair uma verdadeira multidão para o Cine Central. A crítica, no jornal que fechou as portas em 1965, demonstrava entusiasmo. "É de se admirar (...) os progressos feitos na cinematografia nacional. João da Mata é bem um atestado de que se pode produzir em nosso país filmes estupendos que nada ficam a dever às melhores produções importadas dos Estados Unidos. O que mais agrada, entretanto, é a escolha feliz do assunto, que, diga-se a verdade, é simplesmente belo e — o que é melhor — é todo nosso, todo brasileiro", trazia a publicação. Infelizmente, não existem cópias do filme para exibição. Os rolos da película foram atingidos por um incêndio ocorrido na Cinemateca Brasileira. Do filme original sobraram apenas alguns trechos, como o da luta final entre João e o coronel. Estas partes estão disponíveis na Cinemateca Brasileira para pesquisa. Com linguajar típico, obra dignifica o drama da gente caipira Uma análise publicada pelo Itaú Cultural, a partir da avaliação dos fragmentos restantes do filme João da Mata, destaca os letreiros e a referência da obra ao universo do caipira. Realizados por Felipe Ricci, também montador do filme, os intertítulos, com uma grafia particular, são inspirados no linguajar da população do interior de São Paulo e procuram dignificar o drama da gente caipira. Sem apelar para o aspecto cômico da fala inculta, eles ressaltam a injusta condição de João e reforçam sua rigidez moral. "Para explicitar que se trata de uma elaboração de estilo, todas as palavras que ferem a norma culta são sublinhadas. Quando João se indigna com o coronel, surge na tela o intertítulo: 'Mais dá reiva, dá ódio na gente um comprometimento deste. Tudo as coisas que o coronel diz é verdade e o que a gente diz é mentira?!... Mentira proquê semos pobres?!'", traz trecho da análise. Outro aspecto importante do filme é o elenco, formado por atores do teatro amador local e por não profissionais. Na luta final, a maior sequência que restou do filme, quando João enfrenta o coronel, a verossimilhança da luta se destaca mais pelo jogo dos atores do que pela montagem. A câmera a capta de diversos ângulos, ora se aproximando para filmar os rostos, ora se distanciando para enquadrar os corpos que se atracam. Apesar dos planos fixos, a variação proximidade-distância, junto aos movimentos convulsos dos atores, imprime agilidade às cenas. A decupagem — diferentes recortes do mesmo espaço ficcional — dessa sequência sintetiza o esforço do cinema silencioso brasileiro em se equiparar à linguagem desenvolvida pelo cinema norte-americano. JOÃO da Matta. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. SAIBA MAIS Amilar Roberto Alves foi jornalista, dramaturgo e diretor de cinema. Como jornalista, trabalhou em veículos como o Correio Popular, Diário do Povo e o Correio de Campinas. Foi um dos fundadores do Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas (CCLA). Dirigiu diferentes grupos de teatro e foi autor de uma série de peças, como as comédias Qui, Quai, Quod (1921), Tagarelice do Papagaio (1928), Ciúmes e Arrufos (1933), do drama Degenerados (1933), e do drama histórico Fernão Dias (1939), adaptado para o cinema por seu filho, Alfredo Roberto Alves em 1956. Há pelo menos duas ruas no Brasil que homenageiam o cineasta. Uma delas fica em Campinas, na Vila João Jorge, próxima à Avenida Marechal Carmona. A outra fica na capital paulista. Em 19 de março de 2019, foi realizada na Câmara Municipal de Campinas uma audiência pública para debater um projeto de lei que institui no Calendário Oficial do Município a Semana Amilar Alves do Audiovisual de Campinas, a ser celebrada na última semana de maio. De acordo com a propositura, a mostra será organizada anualmente pela Câmara Temática do Audiovisual de Campinas (CTAv Campinas). A proposta foi votada e sancionada em 10 de maio como "Lei Amilar Alves".

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