Há pouco mais de cinco anos, a imprensa noticiava que o Tribunal Superior do Trabalho (TST) concluía o maior acordo da história da Justiça Trabalhista
Há pouco mais de cinco anos, a imprensa noticiava que o Tribunal Superior do Trabalho (TST) concluía o maior acordo da história da Justiça Trabalhista. A Shell e a Basf se comprometeram a desembolsar R$ 200 milhões para a construção e a adequação de complexos hospitalares. Naquele momento, as multinacionais eram condenadas por terem contaminado o solo do Recanto dos Pássaros, bairro rural de Paulínia, onde funcionou por mais de duas décadas uma fábrica de agrotóxicos administrada pelas duas empresas, em diferentes períodos. Hoje, as pessoas se deparam com os centros equipados para pesquisa e diagnóstico do câncer, e com os serviços gratuitos de exames preventivos. Espaços de excelência dentro de entidades filantrópicas. Para o cidadão comum, é um alento saber que o crime ambiental —- manchete de jornais do mundo inteiro — foi adequadamente punido. E que os prejuízos sociais da época são finalmente revertidos em ações práticas de incremento dos serviços públicos de Saúde. O resultado final do caso — que também contemplou assistência e indenização aos trabalhadores e seus parentes — refletiu a ação precisa de advogados, promotores públicos e juízes. Os agentes do Judiciário foram protagonistas de um processo complexo, que se arrastou por mais de uma década, com conclusão exemplar. A decisão As audiências de conciliação no Tribunal Superior do Trabalho (TST) discutiam a indenização que devia ser paga pelas multinacionais a mais de mil trabalhadores que, desde o final da década de 70, estiveram submetidos ao contado com a água e o solo contaminados. Nada menos que 59 trabalhadores morreram em decorrência de doenças potencialmente causadas por agentes químicos nocivos, lançados por décadas nos 40 hectares do bairro rural. O parecer técnico encomendado pela Promotoria de Justiça concluiu que houve “negligência, imperícia e imprudência” da Shell e das outras empresas que a sucederam na área no caso da contaminação da fábrica e dos terrenos vizinhos. Foi acertado que os operários e seus parentes teriam assistência médica vitalícia, e que todos os terrenos contaminados do trecho seriam desocupados e recuperados. Os benefícios também se estenderam aos prestadores de serviços que tiveram contato com a fábrica. SAIBA MAIS A fábrica de pesticidas do Recanto dos Pássaros pertencia desde 1977 à Shell, que vendeu seus ativos à multinacional Cyanamid na década de 1990. Em seguida, o negócio passou para as mãos da Basf, que manteve a planta fabril em funcionamento até 2002, quanto ela foi fechada definitivamente por determinação do governo federal. MPT da 15ª acompanha o processo O Ministério Público do Trabalho (MPT) da 15ª Região, com sede em Campinas, segue acompanhando o cumprimento da assistência médica vitalícia aos beneficiários, conforme acordado. No início de 2019, uma onda de denúncias foi recebida pelo órgão. A informação é do procurador Paulo Crestana. Segundo ele, existem queixas quanto à sistemática dos procedimentos. “As pessoas alegam que, às vezes, entregam documentos que não são aceitos pelas empresas. Em outras oportunidades, entendem que há morosidade ou muita burocracia. Recebemos reclamações, inclusive, que houve atrasos na liberação de verbas para a realização de consultas ou procedimentos médicos. Há reivindicações para um melhor tratamento e maior sensibilidade em questões emergenciais”, disse. O procurador classifica como complexa a relação entre beneficiários e as multinacionais. “Em 2017 e 2018, nós já realizamos audiências abordando essa pauta. Novos encontros vão acontecer nos próximos dias 12 e 14”, esclareceu. Ineditismo da ação exigiu inovação nos procedimentos Maria Inês Corrêa de Cerqueira César Targa, desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 15ª Região, é autora da sentença que condenou as empresas Shell e Basf. Na época, era titular da 2ª Vara do Trabalho de Paulínia, onde o Ministério Público do Trabalho (MPT) de Campinas ajuizou a Ação Civil Pública. Após ser confirmada pela 4ª Câmara do TRT, a decisão foi objeto de recurso de revista no Tribunal Superior do Trabalho (TST), onde a ação foi finalmente resolvida no dia 8 de abril de 2013. Maria Inês reporta os principais trâmites da ação, detendo-se nas dificuldades encontradas para proferir a sentença. “Dado o ineditismo da ação, tivemos de inovar os procedimentos, já que não havia paradigmas nos quais se basear.” Ela ressalta também as dimensões do processo, que somou mais de uma centena de volumes, e o porte das empresas julgadas, “que puderam contar com o melhor time de advogados do País”, o que, segundo ela, requereu um trabalho árduo de sua equipe, bem como dos procuradores do MPT envolvidos no caso, diante dos inúmeros embargos à execução e agravos de petição impetrados. Entre as dificuldades enfrentadas, a magistrada menciona, em primeiro lugar, a delimitação do recorte das pessoas a serem beneficiadas pela ação. Baseada no argumento de que os poluentes orgânicos são agentes bioacumulativos e teratogênicos, ou seja, produzem alterações na estrutura ou função da descendência, a magistrada defendeu que os efeitos da tutela da ação fossem estendidos aos filhos dos trabalhadores nascidos após a exposição dos pais aos agentes químicos. A desembargadora Maria Inês referiu-se também ao esforço para vencer o argumento dos advogados das empresas acerca da inviabilidade de adoção do procedimento trabalhista - caracterizado, entre outros, pela irrecorribilidade das decisões interlocutórias e pela restrição ao número de testemunhas - em ação tão complexa sem prejuízo do direito de defesa. A decisão de condenar as empresas ao pagamento de indenizações por danos materiais e morais, explica a magistrada, teve como fundamentos a responsabilidade civil objetiva do empregador e os princípios da precaução e do poluidor-pagador. O principal obstáculo, segundo ela, foi afastar a tese da defesa de que o direito de ação estava prescrito. Recurso foi destinado à área da saúde Dos R$ 200 milhões pagos pela Shell e pela Basf aos complexos hospitalares a cargo de dano moral coletivo, cerca de R$ 70 milhões ficaram com o antigo Hospital de Câncer de Barretos - atual Hospital de Amor - que usou os recursos para equipar seus centros de pesquisa e atendimento. Em Campinas, a verba possibilitou a construção do Instituto de Prevenção de Câncer e a compra de mais cinco carretas adaptadas e equipadas com aparelhos para realização de exames, sendo quatro delas para diagnósticos e uma para educação. Outros R$ 48,3 milhões foram destinados à construção e aquisição de equipamentos do Instituto de Engenharia Molecular e Celular do Centro Infantil Boldrini. Inaugurado em novembro de 2018, o instituto busca, entre outros, novas metodologias e reagentes para o diagnóstico e tratamento dos pacientes. A Fundação Área de Saúde de Campinas (Fascamp) recebeu cerca de R$ 40,4 milhões para a edificação do Instituto de Otorrinolaringologia de Cabeça e Pescoço, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A Fraternidade São Francisco de Assis na Providência de Deus, instituição sediada em Jaci, região de São José do Rio Preto, recebeu em torno de R$ 24,5 milhões que estão sendo empregados na construção de um barco hospital e R$ 696 mil para uma “ambulancha”. A iniciativa visa atender mais de mil comunidades ribeirinhas do Rio Amazonas, totalizando quase 700 mil pessoas. A Associação Ilumina de Piracicaba ficou com um repasse de quase R$ 28 milhões que será utilizado na construção do Hospital de Câncer na cidade e na aquisição de uma unidade móvel de atendimento. Quando inaugurado, é prevista a realização de aproximadamente 20 mil mamografias anuais, 16,5 mil exames de Papanicolau, 10,3 mil consultas especializadas, 74,5 mil atendimentos, bem como, 15 mil consultas de teledermatologia, 3 mil cirurgias ambulatoriais e outros 61 mil procedimentos especializados. Uma doação de R$ 2,5 milhões foi realizada para o Hospital Estadual de Sumaré. SHELL Em nota, a Shell reforçou que o acordo judicial firmado em abril de 2013, não reconheceu qualquer negligência por parte da Shell e da Basf com relação à saúde dos empregados da antiga fábrica de produtos químicos na cidade de Paulínia. A cláusula 17ª do referido acordo inclusive prevê expressamente que: “a celebração do acordo não importa o reconhecimento pelas reclamadas de responsabilidade pelos danos, de qualquer espécie, invocados pelos reclamantes”. A ação, na qual foi firmado o acordo, jamais versou sobre a contaminação do bairro Recanto dos Pássaros, mas sim e tão somente da planta industrial. Da mesma forma, o acordo não prevê que as empresas construiriam hospitais. O MPT foi a parte responsável pela destinação dos valores, não tendo a Shell nenhuma ingerência nesse processo de destinação. É importante lembrar que, apesar de estudos técnicos mostrarem que a contaminação ambiental não impactou a saúde de ex-empregados e seus dependentes, a Shell já vinha prestando assistência médica integral para os seus antigos empregados e dependentes mais de um ano antes do acordo ser homologado nos termos propostos pelo TST. A Shell depois contratou a operadora GAMA Saúde para processar e implementar o custeio de gastos médicos previstos nos termos do acordo firmado no TST. É importante esclarecer que existe um procedimento de adiantamento, que deve ser feito no prazo de 5 dias utéis, a partir da entrega dos documentos necessários pelos beneficiários. O acordo firmado não prevê a condição de reembolso de eventuais valores despendidos pelos beneficiários. "Além da utilização de médicos particulares, os beneficiários também tem a opção de usar a rede credenciada da Gama Saúde para a área médica e dental, além do sistema e-Pharma para a aquisição de medicamentos.", diz trecho da nota. A Shell reforça que em caso de dúvidas há canais de contato estabelecidos e divulgados ao beneficiários e reitera que detalhes adicionais podem ser encontrados diretamente no Manual do Usuário provido pela Gama Saúde. A Shell viabiliza todos os esforços para realizar, por intermédio da Gama Sáude, todos os adiantamentos solicitados e dentro dos moldes do acordo firmado aos beneficiários e reafirma o seu comprometimento com estes. Por fim, a Shell não reconhece a ocorrência de óbitos relacionados à atividade laboral exercida nas antigas instalações da Shell em Paulínia.