PAISAGEM URBANA

Aconchego acha seu espaço na Glicério

Transformado em ateliê, sobrado construído na década de 30 resiste entre prédios do Botafogo

Rogério Verzignasse
13/10/2013 às 10:58.
Atualizado em 26/04/2022 às 03:20
Francisco José de Souza, o Chico Fransé, no quintal do sobrado cravadoe entre prédios (Érica Dezonne/ ANN)

Francisco José de Souza, o Chico Fransé, no quintal do sobrado cravadoe entre prédios (Érica Dezonne/ ANN)

O sobradinho foi construído no comecinho da Avenida Francisco Glicério, há mais de 80 anos. A fachada tem colunas torneadas, balaústres, janelões, vitrais. E quem caminha pela calçada se impressiona de ver, em plena região central, o imóvel rodeado de folhagens, trepadeiras, esculturas e totens. Por toda a quadra, há prédios enormes. A via é barulhenta, poluída, movimentada. Mas, naquele terreno, se preserva o cenário de uma Campinas agrária e sossegada, hoje bastante raro.Por ali mora o artista plástico Chico Fransé, cidadão de cabelos brancos e barba grisalha que transformou todo o piso inferior (onde no começo havia uma garagem de charretes) em um imenso ateliê. Lá ele junta cacos, telhas, louças, madeira e metais. E usa todo o material para fazer mosaicos belíssimos. E, bom de prosa que só vendo, o senhor faz questão de acolher o visitante no portão, subir as escadas e mostrar o quintal tomado por antúrios, à sombra de um gigantesco ficus.Chico — batizado Francisco José de Souza — nasceu em Campinas há 63 anos. Ele faz parte da terceira geração de uma família que se mudou para cá no começo dos anos 30. Seu avô, Lauro Aragão, morava em Limeira. Mas ele se mudou com a mulher Alzira e começou a trabalhar na Fábrica de Chapéus Cury. Procurando lugar para morar, se encantou com o sobradinho, que já era erguido com material de demolição — um exemplo de reciclagem na época em que nem se usava essa palavra. E por ali os dois criaram filhos e netos, até partirem deste mundo. Lauro morreu em 1984. A mulher, cinco anos depois. Mas a família nunca abandonou o imóvel.Nos anos 90, o predinho até foi transformado em um restaurante, o Duas Torres. Claro, o sobrado, em si, era uma atração. Todo mundo ficava encantado com aqueles lustres, portas originais em pinho de riga, armários centenários, relógio cuco. Mas o negócio não vingou. Chico conta, humilde, que os parentes não levavam o menor jeito para o comércio. E cada um seguiu seu rumo. Ele, solteiro, passou a dividir a casa com uma irmã viúva.A antiga pia da cozinha do térreo virou depósito de pincéis, espátulas, materiais. E uma bancada enorme, no centro do cômodo, virou sua “oficina”. Por toda a volta, se espalham as peças, montadas com vasos, pratos, canecas. São totens gigantes. E, pelas paredes, há pratos decorativos requintados, que ele produz para ganhar a vida. Ah, o mosaicista também ensina os segredos da arte para a criançada, e para alunos que já passaram dos 40. Só não há adolescentes no pedaço. “Ah, essa faixa etária definitivamente não se interessa por arte”, ri. Jovens, só aparecem os estudantes de arquitetura e paisagismo que dão de cara com o imóvel encantador.Sociedade alternativaChico, na mocidade, foi aluno da Escola Panamericana de Artes, em São Paulo. E, no embalo de uma geração que pregava paz e amor, nem quis saber de voltar para a casa da família, ali pelo Botafogo. Passou mais de duas décadas com os amigos nas roças mineiras, pintando telas, fazendo esculturas, estampando tecidos. Foi hippie. Mas voltou para Campinas um pouco antes da morte dos avós. Desde então, trabalha no ateliê. Os parceiros da “sociedade alternativa” ainda aparecem, volta e meia, para lembrar aventuras e gargalhar.Mas o Chico continua, sim, adepto da velha filosofia de vida. Ele sonha, dia desses, fazer as malas e voltar para o interior de Minas. Quer uma casinha no alto da montanha, longe da Campinas barulhenta. E o sobrado? Fica com a família, sabe-se lá por quanto tempo. Apesar do valor sentimental imenso, diz, o mundo muda e as pessoas mudam. As paredes, fala, remetem a um passado que não volta mais. Na certa o imóvel será vendido. Pela localização, vale muito. Resta saber se o novo dono vai ter coragem de passar o trator.

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Correio Popular© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por