Maior complexo científico do país opera em fase inicial, mas já traz contribuições relevantes
Vista parcial do edifício que abriga o acelerador Sirius: resultado da excelência da ciência brasileira (Nelson Kon)
"Se eu parar a pesquisa hoje, comprometo o futuro do país, porque o que está em jogo não é o futuro do mês que vem". A afirmação é do diretor-geral do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), Antônio José Roque da Silva. Formado por quatro laboratórios nacionais e berço de um dos mais complexos projetos da ciência nacional, o Sirius, do CNPEM é referência em pesquisa nas mais diversas áreas do conhecimento, e tem sido fundamental no esforço para combater a pandemia no Brasil.
O CNPEM reúne 40 instalações de pesquisa, que representam diferentes ferramentas experimentais dedicadas à busca de respostas em diferentes áreas da ciência. Entretanto, o Centro enfrenta o corte do orçamento para pesquisas. "Isso parece um pouco com a história da cigarra e da formiga, porque se você não conseguir guardar algo, o seu futuro estará comprometido quando o inverno chegar. Então, o não investimento hoje na ciência compromete o futuro dos jovens do país daqui a cinco, dez anos. É fundamental que a sociedade tenha essa compreensão", alerta o diretor da instituição.
Antônio José Roque da Silva é físico formado pela Unicamp, com mestrado pela Universidade de Berkley (EUA). É membro titular da Academia Brasileira de Ciências. Entre 2009 e 2018 foi diretor do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, chefiando o projeto de construção do Sirius. Desde 2018, está à frente do CNPEM. Durante a entrevista ao Correio Popular, com a participação do presidente executivo do Grupo RAC, Ítalo Hamilton Barioni, o cientista mencionou os principais desafios enfrentados ao dirigir um dos maiores centros de pesquisas do país, em um cenário de pandemia e de cortes de orçamento.
O que são o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron e o Sirius? Que avanços eles trazem em relações a tecnologias que os sucederam?
Acredito que temos que começar a entender que os problemas da sociedade e do mundo demandam conhecimento, uma compreensão dos fenômenos que os cercam. Por exemplo: estamos passando por uma enorme pandemia e a demanda é a de encontrar soluções, como remédios, tratamentos e vacinas. Para isso, é necessário entender especificamente como o vírus invade, domina e controla uma célula, quais são os mecanismos que ele usa para isso. Hoje em dia, se fala muito na busca por alternativas para os derivados de petróleo, que são grandes emissores de CO2. Mas como "desmontar" essa matéria orgânica, esses biomateriais, para fazer os insumos químicos que hoje as indústrias utilizam? Praticamente todas as grandes questões mundiais precisam, em última instância, de uma compreensão de todos esses fenômenos, numa escala que é atômica. Sabemos que todos os materiais são compostos de átomos, de moléculas, de organização desses átomos e moléculas no espaço. É isso que determina o funcionamento e a dinâmica de todos esses processos. A humanidade precisa de ferramentas que ofereçam oportunidade aos pesquisadores para que eles possam investigar esses fenômenos, que estão em uma escala fundamental.
Quando se inventou o microscópio, a humanidade abriu uma nova perspectiva. Entendemos que existem micróbios, depois veio a teoria celular e isso levou a um avanço enorme do nosso conhecimento e da compreensão de doenças, de funcionamento dos organismos. Esses microscópios foram evoluindo, tornaram-se microscópios eletrônicos, que usam feixes de elétrons para investigar a matéria. Assim, ao longo da evolução do conhecimento humano, houve o desenvolvimento de aceleradores de partículas. Esses desenvolvimentos começaram porque, de novo, tentava-se buscar uma compreensão do universo, do funcionamento na escala menor. Os aceleradores de partículas, quando inicialmente projetados, por volta de 1920, eram para permitir que você colidisse partículas de alta energia, com o objetivo de investigar a estrutura mais interna dos átomos. Lá pelos anos 50, teve um avanço nas tecnologias de aceleradores e se chegou a um desenho de acelerador, chamado de aceleradores tipo síncrotron. É um detalhe mais técnico, mas é uma forma de sincronizar a maneira que se acelera essas partículas, com os campos magnéticos necessários para fazer com que elas fiquem em uma órbita fechada. Eles foram construídos para investigar o interior do núcleo e podiam também, através dessa luz que é gerada por esses aceleradores, investigar a propriedade da matéria. Então nasceram as chamadas fontes de luz síncrotron, para investigação de materiais de forma ampla em geral.
A luz gerada por esses aceleradores tipo síncrotron, tem características muito mais parecidas com uma ponteira laser do que de uma lanterna. Ou seja, é uma fonte colimada (direcionada) e intensa e com uma área pequena, que é o que a gente chama de brilho. É uma fonte de alto brilho, e isso se mostrou realmente revolucionário para investigação dos diferentes tipos de materiais. Além disso, ela tem o que a gente chama de amplo espectro. Quando vou investigar o material, eu quero enxergar que tipos de átomos estão lá dentro. Quero saber se a composição tem nitrogênio, carbono, silício. Também quero saber como se organizam no espaço, como é a impressão digital de átomos. Para tudo isso, preciso ter algo que "varra" o material de forma contínua. É exatamente isso que as fontes de luz síncrotron geram. São ferramentas excepcionais para que os pesquisadores possam fazer e responder essas perguntas fundamentais.
Existe a possibilidade de os elementos serem analisados no momento da transformação?
A atual luz síncrotron, comparada à anterior, é muito mais intensa, muito mais colimada. Ela tem uma área emissora muito menor e vai permitir algumas investigações dinâmicas. O que ela não tem ainda é a capacidade de olhar uma reação química, porque é muito rápida, mas permite que você, em uma escala de milissegundos, observe processos dinâmicos, o que já dá para aprender muita coisa que a anterior não permitia. Ela consegue obter respostas dinâmicas. É como se fosse uma câmera fotográfica. Se eu quero fazer uma filmagem que permita que eu pegue cada pedaço do jogador de futebol dando um chute, eu preciso de uma máquina que tenha essa capacidade de aquisição de dados muito rápida. Para que ela consiga captar as imagens rápidas, existe um problema de iluminação. Se eu for fazer isso à noite, fica difícil porque tem pouca luz chegando à minha câmera. Então, eu sempre tenho um compromisso com a intensidade. Eu preciso de máquinas que gerem mais intensidade, em um tempo muito curto.
Pode exemplificar de que maneira a luz síncrotron ajuda, por exemplo, no desenvolvimento de novos fármacos?
Sim. Todo mundo já escutou muito falar que o coronavírus tem uma proteína que chama spike, que se liga ao receptor da célula. Então, spike é uma proteína, um conjunto de átomos organizado em uma molécula. O receptor na célula é também uma molécula. Outra proteína está enfiada lá na membrana da célula e isso precisa encaixar. Aí vem a pergunta: por que encaixa? É como se eu tivesse que enfiar uma chave em uma fechadura, e a chave abre a fechadura porque tem ranhuras específicas que se encaixam nela. Agora, imagina se eu desse a alguém um milhão de chaves para que ela escolhesse uma para abrir aquela determinada fechadura? Na base da tentativa e erro seria algo surreal. Agora, e se houvesse um equipamento que enxergasse dentro da fechadura, quais são as ranhuras? Então, essa pessoa conseguiria olhar aquele conjunto de chaves e apontar qual encaixaria. Fazendo uma analogia, se eu tiver uma ferramenta que enxergue as "ranhuras" da proteína do vírus, a estrutura dela e também a do receptor, posso, quem sabe, desenhar algo que encaixe no vírus e impeça que ele entre na célula. Uma maneira inteligente de se desenhar um remédio é, primeiro, entender que mecanismo causa essa doença, para assim poder combatê-la.
Qual a origem do nome do laboratório, Sirius?
Quando o Sirius começou a ser delineado, entendeu-se que o amadurecimento da ciência brasileira começava a demandar um equipamento da mais alta capacidade, do mais alto brilho. Em 2008, foi encaminhada uma solicitação ao Ministério da Ciência e Tecnologia para a execução de um pré-projeto, para então começar de fato a planejar de forma mais completa esse acelerador. O primeiro recurso veio em 2009. Em 2010, começamos a pensar em um nome bacana. Na França, por exemplo, tem o Soleil. Na Inglaterra, o Diamond. Queríamos algo que não fosse só Laboratório de Luz Síncrotron. Então, fizemos uma pesquisa interna no CNPEM para indicações de nomes. Foram sugeridos vários, mas algumas pessoas mencionaram o nome Sirius. A justificativa era que, como a luz teria alto brilho, Sirius seria o nome adequado, visto que é o nome da estrela do céu noturno de mais alto brilho. É um nome que, em português e inglês, significa a mesma coisa, tem essa representatividade de alto brilho, é um nome fácil e bacana de falar.
Desde a sua inauguração, quantos projetos de pesquisa contaram com o suporte do Sirius? Quais áreas do conhecimento têm recorrido mais ao laboratório?
A primeira linha de luz do Sirius começou a funcionar no ano passado, então ele mesmo recebeu muito pouco, acho que talvez umas 15 propostas. O antigo acelerador, que chamava UVX, que era da chamada segunda geração, tinha um feixe que era ainda grande comparado ao Sirius. É como se fosse uma câmera antiga e agora estamos indo para uma ultramoderna. Ele recebia mais de mil propostas por ano, das mais variadas áreas de pesquisa. Então, a nossa expectativa em relação ao Sirius, quando ele tiver completamente operacional, com todas as suas linhas de luz e tudo funcionando, é de milhares de pesquisadores por ano do Brasil e do mundo, das mais diversas áreas de conhecimento. No momento, tem uma linha de luz que tem chamadas para pesquisadores externos. Esperamos, em breve, mês que vem talvez, ter mais duas linhas de luz que vão começar a receber pesquisadores. Até o final do ano, ter entre seis e sete linhas de luz que vão começar também a receber esses pesquisadores, dependendo dos recursos. O projeto prevê catorze estações experimentais, catorze linhas de luz, cobrindo uma vasta gama de técnicas.