ESPECIAL

A triste realidade das pessoas que se alimentam de lixo

Em Campinas, ainda é comum encontrar pessoas que procuram o que comer nas latas de lixo

Fábio Gallacci
29/09/2013 às 15:51.
Atualizado em 25/04/2022 às 02:01
Homem procura comida em sacos de lixo na Rua César Bierrembach, no Centro: ?A gente perde a vergonha? (Érica Dezonne/AAN)

Homem procura comida em sacos de lixo na Rua César Bierrembach, no Centro: ?A gente perde a vergonha? (Érica Dezonne/AAN)

Encostado em uma das caçambas de lixo que ficam ao lado do Mercado Público de Campinas, no Centro, o funcionário Perci Ruas da Silva não consegue segurar as lágrimas. Ele lembra da vez que viu uma pessoa avançar no amontoado de carne, peixe e verduras descartadas atrás de algo para comer. Foto: Érica Dezonne/AAN Homem que, diariamente, se alimenta de restos de comida rejeitados por restaurante no Cambuí: cidade carece de política para reaproveitamento A cena o obrigou a ir até um restaurante, trazer uma marmitex e um refrigerante para o faminto que não fazia mais questão de usar a dignidade na hora do almoço. Silva é responsável por monitorar as lixeiras do local, que passaram a ser trancadas com cadeados durante boa parte do dia para evitar o garimpo que muitos preferem não ver. Foto: Érica Dezonne/AAN Ronaldo, de 36 anos, com frango achado no lixo: "Tenho que comer" Diariamente, seres humanos fazem dos detritos dos outros a sua chance de se alimentar. Com renda per capita de até R$ 140,00 mensais, cerca de 27 mil famílias vivem abaixo da linha da pobreza em Campinas. A existência da fome em uma região tão rica é uma contradição difícil de compreender. Ao mesmo tempo que alguns buscam a sobrevivência nos restos, o Banco de Alimentos de Campinas, instalado na Centrais de Abastecimento (Ceasa), reúne cerca de 60 toneladas por mês em doações. O próximo 16 de outubro é o Dia Mundial da Alimentação e vale a pena lembrar que, diariamente, 20% de todos os alimentos produzidos no mundo acabam indo para o lixo. Só no Brasil são 39 milhões de quilos desperdiçados diariamente.“Eu fico parado olhando e penso: ‘Meu Deus!’ Meus pais não me ensinaram a ver esse tipo de coisa e ficar calado. Milhares de brasileiros passam por isso, mas a maioria dá as costas. Acho um absurdo as pessoas terem que buscar no lixo uma forma de se alimentar”, lamenta Silva, no Mercadão. Ele abre as caçambas para que os comerciantes descartem seus dejetos sempre às 9h, às 13h e às 17h. As lixeiras ficam abertas por 30 minutos e depois são trancadas novamente. “A situação melhorou, isso aqui era muito pior no passado, um garimpo mesmo. Tinha fila de gente querendo pegar comida e não só de Campinas; vinham de Hortolândia, Monte Mor”, lembra o comerciante Edson Shimabukuro.O diretor administrativo financeiro da Serviços Técnicos Gerais (Setec), Celso Pacini, informa que os comerciantes do Mercadão são orientados a não distribuir comida entre as pessoas que vão até as caçambas, mas a doar o que puderem às entidades assistenciais parceiras. “A maior preocupação é em relação à saúde dessas pessoas”, explica. Ainda segundo ele, no ano que vem as atuais lixeiras serão retiradas e os detritos serão depositados em reservatórios subterrâneos naquela área.A poucas quadras dali, na esquina entre as ruas César Bierrenbach e Dr. Quirino, Ronaldo do Amaral, de 36 anos, esconde um pedaço de frango que acabou de pegar de um saco plástico na calçada ao perceber a aproximação da reportagem. Assustado, ele responde: “É normal, tenho que comer”. A vizinhança não se incomoda mais com a situação e, assim, como um animal, o homem pega o que consegue e some do lugar. “O pessoal nos pede sacolas para colocar a comida, senta na calçada e come. Eles falam que tem coisa boa nesses lixos aí”, afirma a funcionária de um comércio. “A gente pede e só toma porrada. Ajudar vocês não vão! Então, sai daqui!”, reclama outro catador, incomodado com as perguntas. Ele coloca apressado os restos de arroz e carne em uma caixa de sapatos para depois também sumir. Antes, porém, um parceiro seu avança com raiva para cima da fotógrafa. Tenta quebrar o seu equipamento. “Já bati em polícia e posso bater em vocês também”, ameaça, visivelmente alterado.Problemas mentais e o uso de drogas e álcool podem explicar a busca de alguns pelo lixo.Na calçada de um restaurante do Cambuí, em frente ao Largo Santa Cruz, um homem não identificado costuma debruçar-se na lixeira, rasgar o saco plástico e abocanhar o que aparece pela frente. Ele surge sempre nos finais de tarde, quando o estabelecimento está fechado. A reportagem não conseguiu conversar com ele. Segundo vizinhos do local, já acostumados com a cena capaz de chocar qualquer um, ele parece ter problemas mentais. Mas não é violento. Apenas faminto. ‘Quando pedimos, a maioria não dá’ Com duas caixas de sapatos vazias debaixo do braço, o morador de rua João Batista da Cunha, de 51 anos, se curva diante de um saco de lixo na esquina entre as ruas César Bierrenbach e Dr. Quirino, no Centro de Campinas, atrás de sua primeira refeição do dia. O que encontra são restos de comida jogados fora por um restaurante que fica perto dali. Os pedaços de carne, frango e outros alimentos que encontra são colocados rapidamente nas caixas. Sua dignidade não permite que ele coma o que encontrou diante de quem passa por ali. “Sou pingaiada”, diz, assumindo sem receio o problema com o álcool que o levou a essa situação.A rotina é sempre a mesma: no meio da tarde, quando os funcionários do restaurante depositam o lixo na calçada, um grupo de pessoas aparece para buscar comida. A grande maioria de homens adultos. O que os clientes rejeitaram vira o almoço/jantar dos moradores de rua. Além do álcool, muitos deles têm problemas com drogas ou até transtornos mentais.Com os restos já guardados nas caixas de sapatos, Cunha lembra da primeira vez que recorreu ao lixo para sobreviver. “Foi feio. Tinha vergonha. O primeiro saco de lixo que abri atrás de comida foi na Rua Barão de Jaguara. Só lembro que veio ovo, macarrão e bisteca de porco”, diz. Ele aceitou falar com o Correio: Como o senhor foi parar na rua?João Batista - Sou pingaiada... Mas eu só bebo pinga, não faço mais nada. Vivo na rua desde 2002. Antes eu costumava ir e voltar pra casa da minha mãe. Vivia junto com o meu irmão mais novo em uma casinha nos fundos da dela. Ele morreu há cinco meses e, depois disso, fiquei de vez na rua. Minha família é toda evangélica, tenho três filhos já criados e todos trabalham. Minha mulher é cobradora de ônibus. Durmo em um posto de gasolina perto da Prefeitura, onde é mais seguro. Ficamos eu e um parceiro. Um cuida do outro. A gente esconde três cobertores por lá e vai pegar à noite. Não dá para encarar os outros lados... As quebradas do “centrão” são perigosas. O senhor não procura ajuda de ninguém?Eu quero ajuda, mas a sociedade desfaz de você, te humilha. Ninguém sabe a situação que temos que enfrentar na rua, só quem passa por ela sabe. Essas igrejas que ficam no Centro também não te ajudam em nada. Elas é que pedem. Sou pintor, mas roubaram todos os meus documentos. Sem isso, ninguém te oferece nada. É só promessa de ajuda. Não tenho documentos e moro na rua. Fiz um serviço de dois dias um tempo atrás e só recebi R$ 20,00. O cara me pagou e sumiu. Nunca fui preso na vida e, mesmo assim, não tenho apoio. Os únicos que ajudam são as pessoas do SOS Rua (ação da Secretaria Municipal de Assistência Social de Campinas). Algumas pessoas que te conhecem acabam ajudando... Eu já ganhei roupas. Qual a razão de buscar o lixo?A gente tem vergonha de pedir. E, quando pede, a maioria não dá nada. Tem lugar que não dá nem um copo d’água. “Vai trabalhar vagabundo.” É isso que a gente leva. É lógico que a gente quer ajuda, mas sozinho não consegue. Por que o uso das caixas de sapatos?Para guardar a comida que a gente pega pela rua. Antes, eu pegava o saco de lixo, levava para a praça lá embaixo (a Carlos Gomes) e ficava em um lugar escolhendo o que comer. Agora perdemos a vergonha, abrimos o saco aqui mesmo e só colocamos na caixa.  Existem alternativas, diz assistência Transtornos mentais e o uso abusivo de drogas ou álcool são as principais causas que levam as pessoas a buscarem o lixo como alimento. É o que explica a coordenadora setorial de proteção social especial para a população adulta em situação de rua da Prefeitura de Campinas, Cátia Rose Gonçalves da Silva. Os integrantes dos serviços sociais SOS Rua e Consultório de Rua trabalham no convencimento das pessoas para que elas busquem ajuda adequada e, assim, tenham condições de acessar outros serviços do Município, como os que oferecem alimentação sem custos. Nada é forçado, mas se a pessoa estiver em uma clara situação de risco, as equipes de abordagem podem fazer internações involuntárias. Muitas dessas pessoas são levadas ao Centro de Atenção Psicossocial (Caps 3), que é um serviço de saúde mental aberto, capaz de receber esses casos.“A questão da alimentação em Campinas não é gritante porque existem várias alternativas para que a pessoa busque comida diariamente. O gritante é a pessoa estar tão fora de si que não tem o equilíbrio necessário para acessar esses serviços. Algumas vezes, quando a equipe vai dar a alimentação, essa pessoa não come. Ela continua mexendo no lixo porque, em alguns casos, não tem nem noção do que está fazendo”, diz Cátia.Como opções de apoio onde o morador de rua pode encontrar alimentação gratuita ao longo do dia, a coordenadora aponta a Casa da Cidadania, que fica na área do viaduto Miguel Vicente Cury, no Centro (voltada para pessoas que estão pela cidade, no máximo, até três meses). O local oferece 80 refeições por dia, incluindo o jantar, graças a uma mobilização da sociedade civil. A Casa de Apoio Santa Clara, na Rua José de Alencar, 447, também no Centro, que atende pessoas que estão há mais de seis meses em Campinas, oferece café da manhã e tíquetes-alimentação para o restaurante Bom Prato. Ali são oferecidas 50 refeições por dia. Além disso, ainda há o Serviço de Atendimento ao Migrante, Itinerante e Mendicante (Samim), que tem capacidade para receber 130 pessoas entre homens e mulheres. A estrutura fica na Avenida Francisco Elisiário, 240, no Bonfim.A coordenadora lembra de uma história que ficou marcada em sua carreira. Uma mulher passou a dar comida diariamente a um rapaz em situação de rua. Um dia, ela parou de fazer isso. O rapaz, então, começou a mexer no lixo dela. “No momento em que ela nos acionou para atender o caso, a gente flagrou o rapaz pegando uma fralda com cocô de criança e comendo”, conta. “Como aquela mulher estabeleceu um vínculo, para o rapaz aquilo não era lixo, mas uma coisa que estava saindo da casa dela”, explica Cátia. Lixo rico A coordenadora ainda menciona outro tipo de situação que também é comum na cidade: a das pessoas que vão em busca do que pode ser chamado de “lixo rico”, alimentos descartados no comércio ou nas feiras por não terem mais condições de venda, mas que podem ser consumidos. “Um mamão amassado, por exemplo, acaba desprezado no lixo e tem pessoas que pegam para levar para casa. Isso é comum em áreas como o Mercadão e o Terminal Central”, diz.Não há plano para descarteO Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares de Campinas e Região não conta com nenhum plano organizado para que seus filiados disciplinem o descarte dos alimentos que sobram para um possível reaproveitamento. Muito pelo contrário, de acordo com a sua assessoria de imprensa, vários comerciantes temem ser vítimas de problemas na Justiça caso alguém afirme ter passado mal ou ficado doente após comer o que foi repassado por determinado estabelecimento. A Associação Paulista de Supermercados (APAS) também não mantém nenhuma campanha para incentivar a doação de produtos que ainda estejam com sua validade em dia, mas que, por um motivo ou outro, tenham sido retirados das prateleiras. “A única coisa que acontece é uma doação de alimentos nos eventos de mobilização pré-Feira da APAS”, informa a assessoria de imprensa, por e-mail, sem dar mais detalhes sobre o assunto. Apesar da resposta oficial, alguns estabelecimentos doam mensalmente produtos para o Banco de Alimentos de Campinas.   

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Correio Popular© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por