Mais de 60 crianças afastadas dos pais procuram lar para ajudar superar os momentos difíceis
A depiladora Ivone Zeida já recebeu em sua casa seis crianças por meio do serviço Conviver, hoje ela cuida de uma menina de sete meses (Patrícia Domingos/AAN)
O Serviço Família Acolhedora de Campinas busca famílias voluntárias para dobrar a quantidade de atendimento. Atualmente existe um déficit de 50 acolhimentos para atender as 64 crianças em instituicões na cidade. Um desses serviços é o Sapeca, que completa 20 anos esse mês e é vinculado à Secretaria de Cidadania, Assistência e Inclusão Social da Prefeitura. Por meio dele, famílias cadastradas acolhem, em suas residências, crianças e adolescentes afastados do convívio familiar por medida protetiva, em função de abandono ou pelo fato da família se encontrar temporariamente impossibilitada de cumprir suas funções de cuidado e proteção. “Nesse período, são realizados esforços para que o quanto antes aconteça o retorno das crianças e adolescentes ao convívio com a família de origem, extensa ou com pessoas significativas e, na impossibilidade, o encaminhamento para adoção” , explicou a coordenadora do serviço, Adriana Pinheiro. De todas as crianças que passam pelo serviço, 60% acabam retornado para as famílias de origem. “A maior porta de entrada das crianças para as instituições ou abrigos são as negligências e também violências física, sexual e psicológica”, completou. Foi assim com uma das crianças acolhidas pela auxiliar de enfermagem Idelma Aparecida Fernandes Oliveira, de 53 anos. Atualmente ela, seu esposo Cleber Cristiano Oliveira, de 37 anos, e os três filhos Edson, Izabela e Vitor, de 32, 22 e 13 respectivamente, estão cuidando de um bebê de 5 meses por meio do Sapeca. “Cada criança é uma experiência nova. O primeiro acolhimento teve a adaptação mais difícil. Foi um menino de sete anos e que foi absolutamente negligenciado. Tivemos muito trabalho pois ele precisou de um atendimento multidisciplinar, principalmente com a fonoaudióloga. Ele não tinha nada de patológico. Incrivelmente depois de três anos convivendo na nossa casa ele se tornou outra criança. Uma criança normal”, diz. Idelma e a família ficaram sabendo do programa através de um e-mail e foram se informar. Se apaixonaram pela possibilidade de ajudar e entraram no Sapeca. Hoje a família já soma quatro acolhimentos. “Saber que podemos fazer a diferença na vida dessas crianças é a melhor sensação que se pode ter. Sempre me perguntei o que mais posso fazer. Vivemos em um mundo de muita frieza. Já sou uma mulher de 53 anos, tenho minha rotina e meus cansaços, mas quando recebo um sorriso depois de cada mamadeira, minha vida ganha um novo sentido” , desabafa. Para a família, que nos últimos acolhimentos optou por crianças de zero a um ano, o mais difícil é a despedida. “Todos os nossos parentes se envolvem. A cada nova recepção eles fazem um chá de bebê. É muito amor, mas também sofrimento” , conta. O diálogo frequente foi a escolha da família Oliveira para lidar com a separação. “Sempre conversamos para relembrar que somos responsáveis pela mudança de vida dessas crianças em poucos anos, nos concentramos nisso e reunimos força para receber o próximo acolhimento. É muita responsabilidade, mas se vale a pena? Cada minuto” , completa. A família da Idelma, não é o único perfil procurado pelo programa. “Precisamos apenas da disposição. Não importa se a candidata é solteira ou se o casal é homoafetivo, o que consideramos é o amor. Essas crianças e adolescentes precisam também de cuidados, rotina, horários e limites” , disse a coordenadora do Sapeca. Outro programa do Família Acolhedora é o Conviver. Vinculado à ONG Associação de Educação do Homem de Amanhã (AEDHA), o trabalho já completa 10 anos na cidade. Hoje são 13 famílias em acolhimento, cinco aguardando novas crianças ou adolescentes e três em capacitação. “Conseguimos diagnosticar que 80% dos pais das crianças que vivem em instituições de acolhimento sofrem de drogadição ou saúde mental. Isso causa consequências severas na vida dessas crianças” , explicou a coordenadora Érika Cristina Ferraz. “Também não estamos em busca de uma família tradicional, só precisamos que as pessoas entendam que tudo que uma criança precisa para atravessar uma turbulência em sua vida familiar é ser acolhida provisoriamente por outra família. A depiladora Ivone Zeida entendeu a mensagem e, junto com a sua filha Bia, já recebeu seis crianças. Uma bebê de sete meses está com elas há cinco, porque sua mãe não tinha condições de cuidar da bebê. “Quando ela chegou nos meus braços mal se mexia ou tinha qualquer reação. Hoje é uma menina sorridente e feliz. É preciso entender que somos capazes de transformar essas vidas” , conta. Mas as experiências para Ivone já foram complicadas. “Um dos acolhimentos foi com crianças grandes e muito rebeldes. A Jéssica e o Julio não sabiam comer com talheres e nem foram alfabetizados. Passaram um bom tempo comendo com as mãos e ficaram um mês sem tomar banho”, lembra. “O mais assustador é que nas refeições eles cuspiam no meu prato, só mais tarde, com muito diálogo, descobri que, como passaram fome muitos anos, tinham medo que eu comesse e não sobrasse mais alimento na casa. Foi uma situação muito constrangedora e que me comoveu muito, mas que me fez entender o quanto precisavam de mim”. Como as crianças nunca frequentaram escola, Ivone começou o processo de alfabetização em casa. Ela tem apenas um quarto na casa, que adapta para receber os acolhimentos. “Não é preciso dinheiro, nem tempo, nem experiência, só é necessário entender que essas crianças dependem muito de nós e que precisam restabelecer a confiança na instituição família”, diz. Unicef foca na primeira infância O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) também está com uma mobilização pelo fim da institucionalização de crianças menores de três anos. A Campanha "#falepormim" tenta incentivar sociedade e poder público a investir na primeira infância por sérios motivos: - a violência nas instituições é seis vezes mais alta do que num lar de acolhimento; - e a violência sexual é quatro vezes mais frequente do que nas opções de proteção com base no cuidado familiar. A campanha pede por reformas imediatas nos sistemas de proteção, como legislação para limitar a quantidade de crianças menores de três anos em instituições de acolhimento, que sejam alocados recursos técnicos e financeiros para priorizar a proteção da infância, além de apoio do Estado na educação. (R Serviço de Campinas é modelo para o Brasil Quando o programa Família Acolhedora chegou a Campinas não foi muito bem compreendido. A iniciativa, que teve início em países de guerra, só foi reconhecida no Brasil em 2009. E dados da Unicef endossam a importância do acolhimento. A cada um ano de uma criança em uma instituição, são quatro meses de atraso no desenvolvimento. Essa foi uma das grandes motivações para o engajamento em políticas públicas, segundo a secretária municipal de Assistência Social e Segurança Alimentar, Jane Valente. “Os resultados são muito claros. Entendemos a necessidade de elaborar políticas eficientes para a primeira infância e acabamos nos tornando referência nacional. Tanto que a campanha publicitária do Família Acolhedora foi doada mês passado ao Ministério do Desenvolvimento Social para divulgação no País todo” , contou. Além de favorecer o desenvolvimento dessas crianças, outra preocupação da pasta é pensar em ações preventivas. Para a comemoração de 20 anos do Sapeca e 10 do Conviver, a secretaria vai intensificar as campanhas de divulgação. “Precisamos zerar esse déficit. Contamos com novas famílias para que a gente possa mudar a realidade de dezenas de crianças que ainda ocupam nossas instituições de acolhimento”. Para participar, basta entrar em contato com os serviços Sapeca ou Conviver, preencher um cadastro e então passar pelo processo de avaliação e treinamento. Todas as etapas contam com o acompanhamento de uma equipe multidisciplinar que incluiu psicólogos. Psicologia Para o psicólogo e psicoterapeuta de crianças e adolescentes Iuri Victor Capelatto, tão importante quanto o direito à convivência familiar para essas crianças, é o preparo psicológico dos pais. “Essas crianças normalmente sofreram abandono e carregam muita revolta, tristeza e agressividade. É preciso ter certeza que essa família está apta para que aconteça uma adaptação 100% sucedida. Nas adoções vemos muitos casos de devolução. Eu mesmo já atendi dezenas. É muito comprometedor para o desenvolvimento da criança ou adolescente passar por todo o processo novamente. Portanto é preciso agir com responsabilidade” , disse. Segundo o especialista, os candidatos devem entender a sua importância, mas em nenhum momento devem pensar que são heróis. “A realidade é muito mais difícil do que se possa imaginar e se os pais não estiverem preparados, as crianças podem sofrer ainda mais consequências” , disse.