CONSCIÊNCIA NEGRA

A luta das mulheres negras para ocupar espaços de poder

Vereadoras Guida Calixto e Paolla Miguel e secretária municipal Eliane Jocelaine compartilham suas trajetórias que desafiam o status quo

Isadora Stentzler/ [email protected]
18/11/2023 às 12:47.
Atualizado em 18/11/2023 às 12:47
Guida Calixto (esquerda) e Paolla Miguel (PT) foram eleitas em 2020, 18 anos após a primeira mulher negra, Maria José da Cunha, assumir uma cadeira na Câmara Municipal de Campinas (Kamá Ribeiro)

Guida Calixto (esquerda) e Paolla Miguel (PT) foram eleitas em 2020, 18 anos após a primeira mulher negra, Maria José da Cunha, assumir uma cadeira na Câmara Municipal de Campinas (Kamá Ribeiro)

Há 21 anos, Maria José Cunha era a primeira mulher negra a assumir um posto do legislativo campineiro. O ano era 2002 e a conquista marcava a chegada das mulheres negras aos espaços de poder do município. Embora parecesse que a estrutura social começaria a mudar, a cidade somente foi ver mulheres negras em papel de destaque de novo em 2017, quando Eliane Jocelaine Pereira assumiu como a primeira secretária negra da Prefeitura Municipal, e nas últimas eleições municipais, em 2020, quando foram eleitas as vereadoras Paolla Miguel (PT) e Guida Calixto (PT). 

Terceira cidade mais populosa do Estado de São Paulo, e com a fama de ter sido uma das últimas a abolir a escravidão, Campinas ainda não possui em seus espaços de poder a representação e participação ativa de mulheres negras. Elas são minoria e ainda precisam conviver com os rescaldos do racismo estrutural que desacredita e diminui o trabalho realizado. 

Presidente da Comissão da Igualdade Racial da OAB Campinas, Adriana de Morais vê nisso o impacto de uma abolição tardia sobre os corpos negros. “A mulher negra sofre mais com o racismo estrutural porque nós estamos falando de uma sociedade que, embora não esteja 'estamentada' institucionalmente, socialmente reproduz a nossa pirâmide de Kelsen.”.

No topo da pirâmide, conforme explica, estão homens brancos, seguidos de mulheres brancas, homens negros e, por último, na base, as mulheres negras. “Então são três grupos oprimindo essas mulheres negras. E a opressão acaba sendo maior porque elas não conseguem se colocar nesses espaços de poder.”

Para alcançar espaços de destaque, a corrida de mulheres negras passa pelas barreiras do machismo e do racismo, muitas vezes aliadas à pobreza e a violência simbólica submetida aos seus corpos. 

“A mulher negra sofre com a sua retirada de identidade. Então é o nosso cabelo que é questionado, as nossas formas são questionadas, é o nosso corpo que é questionado. Ou então é o nosso corpo que é colocado como se fosse um corpo disponível, pronto para que qualquer um possa usá-lo como entender”, aponta Adriana.

A PRIMEIRA SECRETÁRIA

Eliane viveu isso na pele desde a infância, quando morava em uma casa conquistada pela Companhia de Habitação Popular de Campinas (Cohab) na região dos DICs. Nesse espaço periférico, conta, prevalecia a ajuda mútua entre vizinhos, onde salas com televisão eram abertas na casa de um para receber aqueles que não tinham o aparelho. Até mesmo rádios eram emprestados para compartilhar o prazer de ouvir uma música. 

Já na escola, o ambiente era o revés do vivido entre a vizinhança. A hostilidade e o preconceito fizeram com que Eliane fosse agredida por conta da cor. “Hoje a gente fala do racismo, mas acho que a crueldade do racismo nos anos 80 era pior”, analisa. “E isso vai te atingindo de forma muito cruel. Porque você começa a duvidar se a sua existência vale a pena.”

Eliane Jocelaine começou a trabalhar na Prefeitura em 1979, com 18 anos, após passar em concurso público; foram 15 anos até o primeiro cargo como gestora (Divulgação)

Eliane Jocelaine começou a trabalhar na Prefeitura em 1979, com 18 anos, após passar em concurso público; foram 15 anos até o primeiro cargo como gestora (Divulgação)

Sobreviver a esse contexto era encontrar forças nas próprias raízes, e a mãe de Eliane teve um papel fundamental nesse processo. Ela relata que desde cedo foi incentivada a estudar. Pra Eliane, era apenas com estudo que aquela realidade em que estava inserida poderia mudar de alguma forma: para ela, para a sua família e para a comunidade.

Foi assim que no ano de 1978 ela prestou concurso público, aos 17 anos, para a Prefeitura Municipal de Campinas. Aprovada, assumiu um cargo no ano seguinte, quando completou 18 anos. “Mas entrar no concurso público não significava que eu iria avançar”, lembra. “Busquei trabalhar fora da minha jornada de trabalho, pedia para fazer ações extras nos conselhos de direitos humanos, pela igualdade racial, porque eu achava que isso poderia fazer eu ter essas oportunidades e construir uma visão de mundo diferente.”

Paralelo a isso, ela também se formou em Direito pela Universidade Paulista e em Liderança Executiva em Desenvolvimento pela Primeira Infância, pela NCPI Harvard. 

Foram 15 anos para ela alcançar o primeiro posto de gestão. De lá, ela saiu para se tornar, em 2017, a primeira secretária negra da Prefeitura, à frente da pasta de Direitos da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida e, depois, na Secretaria de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos.

Hoje, Eliane é a titular da Secretaria de Gestão e Desenvolvimento de Pessoas, onde se orgulha de realizar um trabalho por uma sociedade antirracista e com mais oportunidades. Entre suas ações, ela participou da inserção da Lei de Cotas na Prefeitura, da criação do guia de terminologias em políticas afirmativas e de um projeto que ainda será lançado para criação de lideranças negras. 

“Quando a gente fala do racismo estrutural tem que interseccionar. No meu caso eu sofri e sofro. A mulher já é vista como um ser inferior, a mulher negra mais ainda. Meus 15 anos para chegar a gestão foram isso”, conta.

6% DO LEGISLATIVO

No legislativo campineiro, a primeira vez que uma das 33 cadeiras foi ocupada por uma mulher negra foi no ano de 2002. Depois disso, apenas as últimas eleições, ocorridas no ano de 2020, trouxeram mulheres negras para a Casa de Leis. Guida Calixto e Paolla Miguel, ambas do PT, representam o ínfimo recorte de 6% dos vereadores. 

A lacuna histórica que separa o tempo levado para que mulheres negras ocupassem essas cadeiras no Legislativo são pontos comuns nas críticas de ambas as vereadoras, que também militam por mais representatividade não apenas na Câmara, mas em quaisquer postos de liderança.

“Os espaços de parlamentos, de poder, são majoritariamente ocupados por homens, e o machismo cultural que nós temos faz com que os espaços da política não sejam ocupados pelas mulheres, porque elas são culturalmente direcionadas para outras tarefas, principalmente as de cuidado. Então são as mulheres na casa e os homens no mundo. Por isso quando se tem uma mulher negra ocupando esses espaços a hostilidade é gigantesca. Nós temos que, a todo momento, exigir o direito que temos de exercer o nosso papel”, defende Guida. 

Embora a população negra seja a maioria da população no país, Guida reflete que a falta de representatividade dela, e sobretudo da mulher negra, decorre do racismo estrutural, uma vez que é deixado ao negro apenas os espaços de sobrevivência, onde muitas vezes sequer o estudo é concluído. 

Esse cenário prejudica a ascensão e independência dessa população que continua marginalizada. Não à toa, as histórias das mulheres negras que furaram essa bolha soam semelhantes. 

Paolla se somou à política a partir do ano de 2013, quando percebeu a força que ela poderia ter na mudança social. Inspirada no legado de Marielle Franco, deputada federal negra do Rio de Janeiro assassinada em 2018, desejou se tornar parlamentar por ver um rosto como o dela lutando por uma sociedade mais igualitária.

Perceber que ela poderia ocupar um desses espaços de liderança a engajou na luta e culminou com sua eleição para vereadora no ano de 2020. 

Até hoje, ela diz que os problemas relacionados ao racismo a perseguem. Em 2021, a vereadora foi chamada de “preta lixo”. A ofensa partiu da área do público, dentro da Câmara, e ocorreu no momento em que ela discursava sobre um projeto que tratava do Conselho de Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra e um Fundo Municipal de Valorização da Comunidade Negra. Até hoje o caso não foi concluído.

“Mesmo passando por tudo isso, vivencio estar em um espaço que não me quer ali. Um sistema que quer tirar tudo de nós, que não nos quer permitir que tenhamos alguma coisa, nem voz. Por isso ainda temos que enfrentar.”

Neste Dia da Consciência Negra, elas evocam por uma sociedade mais igualitária, com garantias e direitos, onde a cor não segregue e a raça não separe, sendo ainda a representação de mulher negra que lhes faltou no passado.

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