Sinto falta das conversas com Paulo Martinelli, colega de redação que morreu prematuramente, há mais de um ano, vítima de um enfarte fulminante. Fumávamos nos intervalos, no pátio do jornal, e volta e meia o assunto girava em torno da estupidez em geral, da estreiteza da mentalidade das pessoas, da boçalidade. Da ignorância, enfim.Martinelli era um veterano que granjeou respeito com sua vasta bagagem e suas opiniões fortes — algumas de provocar calafrios nos temperamentos politicamente corretos. Um pouco do senso comum a seu respeito — e que talvez ele próprio tenha contribuído para alimentar — era de que sua ascendência italiana teve papel determinante em moldar seu gênio e suas convicções, inclusive políticas. Mas Martinelli, acima de tudo, era um sujeito inconformado com o atraso, o retrocesso, a burrice, o obscurantismo. Dizia: “As pessoas adoram mistificar”, frase que ouvi dele diversas vezes e da qual minha formação me impede — e sempre me impediu — de discordar.Anteontem, a Folha Online publicou uma entrevista com o biólogo britânico Richard Dawkins na qual ele critica a tendência geral de se atribuir caráter sobrenatural aos fenômenos que não se consegue, em um primeiro momento, explicar, e acrescenta que as pessoas não deveriam ser “preguiçosas, covardes e derrotistas” e se negar ao esforço de buscar explicações científicas para os mistérios deste mundo. E mais: afirma que crenças religiosas que vão de encontro ao consenso científico não merecem respeito. Como aquelas que afirmam que “a Terra tem apenas cerca 10 mil anos” (só para o registro: há 10 mil anos, o homem já havia descoberto a agricultura).Dawkins é ateu e explicita essa condição em livros como Deus, um Delírio. Mas acho que o seu ateísmo é exagerado pelos meios de comunicação (e por ele próprio), como se a recusa em aceitar divindades fosse condição sine qua non para poder praticar ciência com um olhar isento. Como se só mediante a negação de deuses e religiões pudéssemos estar preparados para enxergar e tentar compreender as coisas do mundo com uma abordagem cautelosa e analítica, e ainda assim curiosa e disposta ao maravilhamento.Quero deixar uma coisa clara: não estou fazendo uma defesa das religiões. Sou ateu como Dawkins e, como disse acima, compartilho da aversão do saudoso colega Martinelli à mistificação. O que me incomoda é a tendência atual de se querer discutir uma possibilidade de harmonia, de coexistência, entre duas coisas que são estanques a priori: a ciência e a religião. “Há lugar para Deus na mecânica quântica?”, perguntou certa vez um insistente entrevistador ao físico e astrônomo Marcelo Gleiser, um dos principais nomes da divulgação científica no Brasil. “Não, a mecânica quântica não precisa de Deus para funcionar”, cravou Gleiser, para o meu alívio.Um cientista pode ser um católico fervoroso e, como se diz, ter fé de que vai chegar a um resultado no mínimo satisfatório em suas pesquisas. Mas a ciência em si é algo que prescinde da fé: é resultado da aplicação de métodos rigorosos e de exaustivas observações, da busca extenuante da relação entre causas e efeitos. O cientista, por definição, não considera o mágico nem o sobrenatural como elementos de seu ofício. Essas coisas pertencem a outro departamento.