RODRIGO DE MORAES

Cada coisa em seu lugar

Rodrigo de Moraes
rodrigo@rac.com.br
03/04/2013 às 05:06.
Atualizado em 25/04/2022 às 22:05

ig - Rodrigo Moraes (CEDOC)

Sinto falta das conversas com Paulo Martinelli, colega de redação que morreu prematuramente, há mais de um ano, vítima de um enfarte fulminante. Fumávamos nos intervalos, no pátio do jornal, e volta e meia o assunto girava em torno da estupidez em geral, da estreiteza da mentalidade das pessoas, da boçalidade. Da ignorância, enfim.

Martinelli era um veterano que granjeou respeito com sua vasta bagagem e suas opiniões fortes — algumas de provocar calafrios nos temperamentos politicamente corretos. Um pouco do senso comum a seu respeito — e que talvez ele próprio tenha contribuído para alimentar — era de que sua ascendência italiana teve papel determinante em moldar seu gênio e suas convicções, inclusive políticas. Mas Martinelli, acima de tudo, era um sujeito inconformado com o atraso, o retrocesso, a burrice, o obscurantismo. Dizia: “As pessoas adoram mistificar”, frase que ouvi dele diversas vezes e da qual minha formação me impede — e sempre me impediu — de discordar.

Anteontem, a Folha Online publicou uma entrevista com o biólogo britânico Richard Dawkins na qual ele critica a tendência geral de se atribuir caráter sobrenatural aos fenômenos que não se consegue, em um primeiro momento, explicar, e acrescenta que as pessoas não deveriam ser “preguiçosas, covardes e derrotistas” e se negar ao esforço de buscar explicações científicas para os mistérios deste mundo. E mais: afirma que crenças religiosas que vão de encontro ao consenso científico não merecem respeito. Como aquelas que afirmam que “a Terra tem apenas cerca 10 mil anos” (só para o registro: há 10 mil anos, o homem já havia descoberto a agricultura).

Dawkins é ateu e explicita essa condição em livros como Deus, um Delírio. Mas acho que o seu ateísmo é exagerado pelos meios de comunicação (e por ele próprio), como se a recusa em aceitar divindades fosse condição sine qua non para poder praticar ciência com um olhar isento. Como se só mediante a negação de deuses e religiões pudéssemos estar preparados para enxergar e tentar compreender as coisas do mundo com uma abordagem cautelosa e analítica, e ainda assim curiosa e disposta ao maravilhamento.

Quero deixar uma coisa clara: não estou fazendo uma defesa das religiões. Sou ateu como Dawkins e, como disse acima, compartilho da aversão do saudoso colega Martinelli à mistificação. O que me incomoda é a tendência atual de se querer discutir uma possibilidade de harmonia, de coexistência, entre duas coisas que são estanques a priori: a ciência e a religião. “Há lugar para Deus na mecânica quântica?”, perguntou certa vez um insistente entrevistador ao físico e astrônomo Marcelo Gleiser, um dos principais nomes da divulgação científica no Brasil. “Não, a mecânica quântica não precisa de Deus para funcionar”, cravou Gleiser, para o meu alívio.

Um cientista pode ser um católico fervoroso e, como se diz, ter fé de que vai chegar a um resultado no mínimo satisfatório em suas pesquisas. Mas a ciência em si é algo que prescinde da fé: é resultado da aplicação de métodos rigorosos e de exaustivas observações, da busca extenuante da relação entre causas e efeitos. O cientista, por definição, não considera o mágico nem o sobrenatural como elementos de seu ofício. Essas coisas pertencem a outro departamento.

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