PASQUALE CIPRO NETO

Biópsia, biopsia, necrópsia, necropsia...

20/03/2015 às 05:00.
Atualizado em 24/04/2022 às 02:57

Volta e meia, leitores me escrevem porque ouvem na televisão, sobretudo na Globo, a palavra “necropsia”. Leia o que está escrito, por favor. Note que não há acento no “o”, portanto a intensidade tonal de “necropsia” recai sobre o “i”, ou seja, lê-se “necropsia” como se lê “Maria”, “avaria”, “nostalgia” etc. Esses leitores querem saber se é correta essa pronúncia e também se o exame no cadáver é “necropsia/necrópsia” ou é “autopsia/autópsia”. Basta que haja um caso policial de grande repercussão para que chovam perguntas sobre isso.   A tarefa não é tão simples quanto talvez pareça, mas vamos em frente, começando por “autópsia/autopsia”. O primeiro sentido que os dicionários dão para essa palavra é o óbvio: “exame de si mesmo” (Aurélio); “exame, inspeção de si próprio” (Houaiss). E por que “o óbvio”? Porque o elemento grego “auto-” significa “por si mesmo”, “de si próprio”; o elemento (também grego) “-opsia” tem, entre outros, o significado de “exame visual”. Como se vê, a autópsia/autopsia é, literalmente, o exame que alguém faz em si mesmo.   No verbete “autópsia”, a segunda definição de uma das edições do Aurélio é “necropsia” (sem acento no “o”), precedida destas abreviaturas: “Med. Imp.” (“Med.” significa “medicina”; “Imp.” significa “impróprio”, “impropriamente”). Tradução: segundo o dicionário, trata-se de termo médico, usado impropriamente. Convém dizer que, apesar de impróprio, o termo “autópsia” está consagrado pelo uso (entre os próprios médicos), fator importante quando se trata das questões de uma língua. E por que é impróprio? Porque, como os mortos não fazem o exame de si mesmos, o termo próprio ou apropriado é “necr...”.   Chegamos a um ponto delicado. Nas edições recentes dos nossos mais importantes dicionários e no Vocabulário Ortográfico, da Academia Brasileira de Letras, essa questão já foi resolvida satisfatoriamente, mas, em edições anteriores, a coisa tinha todos os ingredientes de uma boa salada. Como ninguém é obrigado a comprar dicionários todos os anos...   Bem, se você tem, por exemplo, edições anteriores do Aurélio, do Houaiss e do Vocabulário Ortográfico, verá apenas a forma “necropsia” (sem acento no “o”). É bom repetir: “necropsia”, que (também é bom repetir) se lê com intensidade tonal no “i”. E a forma “necrópsia”, muito mais ouvida do que “necropsia”? Que diziam dela os dicionários? E que diziam de “biópsia/biopsia”? Era uma tremenda salada. O Houaiss, o Novo Aurélio Século XXI” e o Vocabulário Ortográfico registravam “biópsia” e “biopsia”. Em “biopsia”, o Novo Aurélio dizia que a pronúncia corrente é “biópsia”. O Houaiss dizia que “biopsia” é mais correta e menos usada do que “biópsia”.   Quando explicava os valores do elemento pospositivo “-opsia”, o “Houaiss” dizia que a origem grega preconiza a tonicidade no “i”, mas, uma vez formada “autópsia” (com tonicidade no “o”), esta serviu de base para a variação, nem sempre regular, entre “-ópsia” e “-opsia”. Em seguida, o dicionário dá alguns exemplos, entre os quais está “necrópsia”. Sim, “necrópsia” (com acento no “o”), forma que, nessa monumental obra, também aparecia neste trecho do verbete “biópsia”: “Constituída no modelo de necrópsia e autópsia, a palavra segue no português o padrão fônico das outras duas, com reflexo na grafia, daí biópsia”. Até aí, tudo bem, mas o “Houaiss” não registrava o verbete “necrópsia”, ou seja, como entrada, só registrava “necropsia” (sem acento no “o”).   O querido amigo Mauro Villar, lexicógrafo responsável pelo verdadeiro monumento que é o “Dicionário Houaiss”, agradeceu-me por todas essas observações, que fiz diretamente a ele, e garantiu que seriam levadas em conta na edição seguinte da obra. Dito e feito! Quem tem a última edição está livre da salada. Todas as palavras da família foram registradas das duas maneiras: biópsia e biopsia; autópsia e autopsia; necropsia e necropsia.   Convém dizer que o minidicionário “Caldas Aulete” e a última edição do “Vocabulário Ortográfico” também dão todas as duplas, mas a versão eletrônica do “Aulete”... Saladinha! Essa versão só registra “necropsia”, “biopsia” e “autópsia”... Quem é que entende? Bem, vale lembrar que o “Vocabulário Ortográfico” tem força de lei.   Lutar contra a maré parece inútil. As formas e as pronúncias que respeitam o étimo, a origem (“necropsia”, “autopsia” e “biopsia”) não podem anular o registro das formas mais usadas e pronunciadas (“necrópsia”, “autópsia” e “biópsia”).

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