ABANDONO

Bebida com etanol é risco à vida de morador de rua

Campinas registrou mais uma morte - Anfrísio Pereira da Silva, de 61 anos, encontrado morto no Botafogo; número de vítimas subiu para sete em apenas três meses

Gustavo Abdel
17/06/2015 às 17:00.
Atualizado em 23/04/2022 às 10:25
Morador de rua dorme ao lado de garrafa com a mistura de álcool combustível na praça em frente à Catedral, no Centro (Elcio Alves)

Morador de rua dorme ao lado de garrafa com a mistura de álcool combustível na praça em frente à Catedral, no Centro (Elcio Alves)

Campinas registrou mais uma morte de morador em situação de rua, na segunda-feira (15), e subiu para sete o número de vítimas em apenas três meses. O piauiense Anfrísio Pereira da Silva, de 61 anos, foi encontrado morto na Avenida Governador Pedro de Toledo, no Botafogo, e segundo os colegas ele estava com a saúde muito debilitada em decorrência do alto consumo de álcool. Um coquetel chamado de “doidão”, à base de álcool combustível, água e suco em pó, está sendo consumido entre esses moradores. Eles confirmaram ao Correio que os postos da região central vendem sem restrição o combustível para essa população.Médicos, porém, alertam para a combinação considerada “explosiva” da ingestão de álcool 100% puro, principalmente para pessoas com a saúde já debilitada em decorrência da situação vulnerável em que vivem. A concentração de etanol no sangue pode ser fatal, ou então, dependendo do grau de intoxicação, pode levar ao coma profundo, e se o consumo for frequente, mata o indivíduo nessas condições em questão de meses. Somente nos últimos 40 dias morreram cinco moradores em situação de rua na área central, e os laudos prévios atestaram para causas naturais, ou seja, a maioria apresentou problemas pulmonares, cirrose e outras fragilidades. A Polícia Civil aguarda os laudos conclusivos desses óbitos. Mesmo que as madrugadas ainda não tenham atingido baixas temperaturas, pela fragilidade corporal e em geral pela situação de entorpecimento quando vão dormir, os moradores nessas condições não percebem que estão tendo uma hipotermia e muitas vezes são vítimas de paradas cardiorrespiratórias.No caso de Anfrísio da Silva, que morreu nas proximidades da rodoviária, ele vinha reclamando de muita dor abdominal nas últimas semanas, e além de fumar três maços de cigarro por dia, segundo a colega Maria Valderiza de Andrade, de 33 anos, o piauiense bebia mais de quatro garrafinhas de pinga diariamente. “Ele reclamou de muita dor na barriga e foi deitar. Na madrugada os colegas chamaram ele e viram que tinha morrido”, disse Maria, garantindo que em sua “maloca” (como chamam os grupos de moradores de rua) não é consumido álcool combustível.“Aqui é pinga pura, que já faz muito mal”, disse. “O posto aqui na frente (Avenida Governador Pedro de Toledo) vende para quem quiser álcool, e muitos moradores, na falta da pinga, vão até lá”, disse a moradora de rua. Ela, o marido e um colega dormiam às 11h30 de terça-feira (16) na calçada em frente ao Serviço Municipal de Atendimento ao Migrante Itinerante (Samin), no Bonfim. Às 12h30, o Instituto Médico Legal (IML) confirmou que o corpo de Anfrísio aguardava a retirada de familiares, porém, ninguém havia procurado por ele.De acordo com a secretaria de Cidadania, Assistência e Inclusão Social de Campinas, as mortes que ocorreram em abril foram nos dias 3 e 24. Na primeira data um morador de rua identificado por Flávio Sousa (sem idade aparente) foi encontrado morto na Rua Sacramento, nas proximidades do Clube Fonte São Paulo. Ele morreu em decorrência de infecção generalizada, e usava uma bolsa de colostomia em decorrência de problemas intestinais. No dia 24 um rapaz de aproximadamente 35 anos foi achado morto em frente ao número 200 da Rua Coronel Quirino, mas a secretaria não tem a identidade do indivíduo.Coquetel doidão Quando falta pinga, alguns moradores de rua apelam para o álcool combustível. E para torná-lo menos intragável, estão misturando suco em pó, geralmente com sabores de abacaxi ou limão, colocam uma pitada de açúcar e diluem em boa quantidade de água para não “arder a língua” e tomam.“Quando a gente fica sem pinga vamos até o posto e compramos. É a fissura. Daí a gente coloca suco de abacaxi, ou espreme um limão, põe água e toma”, relatou Valdívia Ferreira Gomes, de 39 anos, conhecido como “Garrafinha” na região central. Seu colega, Francis Máximo, ou “Sabonete”, de 35 anos, confirma a receita e garante que não faz uso frequente de álcool combustível. “Essas pingas que a gente toma (mostra uma pequena garrafa) já são muito fortes”, afirma.Segundo o morador de rua que se apresentou como Cigano, e fica na Praça Quebra Ossos, no Terminal Central, já viu muitos colegas tomarem álcool combustível puro, em uma situação de extremo desespero. Ele mesmo relatou que passa longe de álcool, já que sofreu sérias queimaduras no corpo enquanto cozinhava na beira da sarjeta.A reportagem foi em três postos, sendo um deles na Avenida Governador Pedro de Toledo, onde a moradora de rua Maria Valderiza informou que colegas era abastecidos pelos frentistas. Porém, os funcionários negaram que forneçam álcool aos moradores. Na Avenida Moraes Sales com a Rua José Paulino, o frentista de um posto confirmou que um concorrente na Avenida Francisco Glicério fornece combustível com frequência, mas que lá não adotam essa prática, “apesar de muita procura”, disse. “Eles pagam cerca de R$ 0,50 e conseguem quase 200 milímetros, que é uma boa quantidade”, avalia. Já no posto indicado pelo frentista, a gerente garantiu que seus frentistas não enchem garrafa de morador de rua.Efeito no organismo é devastador Os médicos ouvidos pela reportagem apontam o consumo do álcool combustível devastador para o organismo. Em moradores que vivem nas ruas o efeito é potencializado devido às debilitações em que já se encontram essas pessoas. De acordo com o clínico geral Olney Fontes, especialista na doença do alcoolismo e diretor da junta de serviços gerais de Alcoólicos Anônimos (AA), o etanol é um depressor do sistema nervoso central e é uma droga que afeta todo o organismo.“O corpo de um morador exposto na rua é frágil, pois não tem alimentação adequada e ingere grandes quantidades de álcool. Quando há ingestão de álcool puro o efeito é devastador e a concentração no sangue pode ser fatal”, explicou.O consumo constante de álcool combustível causa alterações em vários órgãos e sistemas e pode causar danos hormonais, nutricionais, cardiovasculares e atingirem ainda o fígado, pâncreas, e estômago.Enquanto o volume de etanol permitido na cerveja varia de 4% a 6%, a concentração de etanol combustível é de 100% com o acréscimo de 4,95% de água. Na pinga o volume de álcool é de 50%, ou seja, um litro de cachaça tem metade de etanol. “O fígado é a principal vítima, pois concentra 98% desse álcool consumido”.A fisiologista e professora do curso de Medicina da Universidade São Fanscisco (USF), Celena Maria Zani de Souza, explica que o álcool tem as chamadas “calorias vazias”, e que faz o usuário perder o apetite e ter uma falsa sensação de calor. “Quando o morador de rua está exposto ao frio e sua temperatura corporal cai abaixo de 37º C ele entra em estado de hipotermia. Como está com o corpo debilitado (às vezes inconsciente por causa da ingestão de álcool) e sem energia para combater o frio, a morte geralmente ocorre por parada cardiorrespiratória”, explicou. Quanto mais o lugar estiver úmido, mais calor o corpo perde e mais rápido se chega ao estado de hipotermia. SAIBA MAISDatas e locais onde os moradores em situação de rua foram encontrados mortos:3 de Abril - Rua Sacramento, próximo ao Clube Fonte São Paulo, identificado como Flávio Sousa (sem idade)24 de Abril - Rua Coronel Quirino, próximo ao número 200, rapaz de aparentemente 35 anos (sem identidade)17 de Maio - Avenida Francisco Glicério esquina com a Rua Benjamin Constant (sem informações sobre a vítima)29 de Maio - Avenida Francisco Glicério com a Rua Ferreira Penteado, homem de aproximadamente 50 anos com apelido de “pai” ou “Baixinho”4 de Junho - Avenida Moraes Salles com a Rua Barão de Jaguara, Luis Carlos Pedro Dias, de 63 anos11 de Junho - Rua Doutor Ricardo, em frente ao Terminal Metropolitano Prefeito Magalhães Teixeira, tinha aproximadamente 40 anos e o apelido de “Barbinha” e era de Santos.15 de Junho - Avenida Governador Pedro de Toledo, próximo ao número 10, e foi identificado como Anfrísio Pereira da Silva, de 61 anos.Álcool sufoca dramas de quem vive nas ruas O cozinheiro industrial Alex Gey da Silva vai completar no próximo dia 22 mais um aniversário nas ruas de Campinas. Aos 41 anos, fará dois deles que enfrenta o frio, a depressão e o alcoolismo ao lado de seu fiel companheiro de marquise, Paulo César, de 48 anos, nessas condições há um bom tempo também. Alex é de Torrinha, região de Rio Claro, mas deixou o município assim que perdeu a esposa e o filho Lucas em um acidente de carro.“Cai em depressão e fui para as ruas. Entrei de cabeça no álcool e hoje sou um dependente”, disse. Na terça-feira (16) na hora do almoço ele estava com o companheiro de rua Paulo César sentado em frente a sede dos Correios, no Centro. “Em um momento de loucura tomei duas garrafas de 600 ml de álcool combustível. Também já tomei acetona de tanta dependência que eu tenho”, revelou. “Não tomo mais combustível por que me fez muito mal. Fiquei ruim muitos dias seguidos”, confessa.A facilidade para adquirir é um chamariz para aqueles que querem algo mais forte e com pouco dinheiro. Paulo César disse que nunca tomou, mas não abandona a garrafa de cachaça também. “Tenho quatro filhos e sai de casa”. De poucas palavras, não disse os motivos. “Na rua faz muito frio, e bebemos para esquecer o passado e esquentar o corpo”, emendou Alex, que ainda tem uma filha morando em Torrinha. Ele já procurou ajuda para controlar o alcoolismo, mas disse que não foi forte o suficiente.InvernoDe acordo com a Secretaria Municipal de Cidadania, Assistência e Inclusão Social, a Operação Inverno teve início no dia 1° de maio e se estende até o dia 30 de setembro, com o objetivo de acolher as pessoas em situação de rua. O Serviço de Orientação Social (SOS) Rua, que normalmente atua das 8h às 22 horas, durante esta operação, amplia o horário de abordagem até às 24h, de segunda a sexta-feira, com plantões aos fins de semana e feriados das 18h às 24h.“O trabalho de abordagem encaminha as pessoas que aceitam o atendimento de forma voluntária. Os técnicos dos serviços percorrem itinerários pré-estabelecidos, onde há maior concentração de pessoas que vivem em situação de rua e atendem solicitações dos cidadãos, até as 22 horas, por intermédio do telefone 7821-4140”, divulgou em nota a pasta. Desde o início da operação até segunda-feira passada foram distribuídos 898 cobertores para as pessoas que se recusaram a acompanhar a equipe até o Samim (Albergue Municipal) — que possui 130 vagas, onde podem pernoitar por até cinco noites, período que pode ser prorrogado conforme a necessidade, e recebem jantar, café da manhã e higiene.As pessoas que aceitam o encaminhamento pela equipe de abordagem são levadas para a família quando é munícipe, para pronto-socorro em situação grave de saúde ou ao próprio Samin. O trabalho desenvolvido pela rede socioassistencial da Prefeitura, em relação aos moradores de rua, tem início com o serviço de abordagem de rua, estabelecendo um vínculo de confiança com a pessoa que está na rua.O objetivo, segundo a secretaria, é evoluir desse atendimento para a construção de novo projeto de vida com adesão a tratamento de saúde, ao encaminhamento para retorno à família ou à cidade de origem ou a unidades de acolhimento institucional visando sua reinserção social.SAIBA MAIS Efeitos do álcool combustível no corpo humanoCérebro - O etanol por si só é um depressor do sistema nervoso central, e em forma de combustível acelera a degeneração das células do cérebro e compromete as funções nervosas e cerebrais. Coração - Altas doses produzem aumento de pressão sanguínea e elevam a possibilidade de ataques cardíacos.Fígado - A bebida alcoólica já atinge 98% do fígado, e o álcool em formato puro em ingestão prolongada leva a uma cirrose hepática e consequente falha em seu funcionamento.Estômago - O etanol é tóxico para as células do estômago, e uso em excesso leva a hemorragia.

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