Ana Salvagni é cantora, regente e poeta (Divulgação)
O início quer entusiasmo; a necessidade, pressa.
A repetição quer o acaso; e o descaso, a devoção.
A pele quer sol; os pés, um caminho; o beijo, um cantinho.
O verbo quer atino, a arte, o espanto; a voz, o canto.
O querer pede destino; a alma, o encanto; a calma, desatino.
O desastre quer fuga; a fuga quer um sofá e uma televisão.
A incerteza pede adiamento; a certeza carece urgentemente da dúvida.
A Natureza pede paz; a criança, vigilância; o alvoroço, a aurora.
A rua quer sossego, mesmo que sirva a acelerações.
A casa quer movimento, mesmo por entre os pesados móveis.
A cama quer histórias; o deslize, um véu; o papel, memórias.
O escuro quer sonho; o medo quer o dia; a raiva, a clareza.
A mesa pede decisões; o instante, a percepção; a música, conexões.
A vida quer tempero; o tomate, a erva-doce; o trabalho, mais sabor.
O sofrer pede frescor; a dor, um afago; a febre, um cobertor.
A cantina quer a fome; as taças, os amigos; as facas, o fio.
O frio pede providências, caldos e saudades velhas.
Os nós querem o pente; o ausente somos nós.
A cor pede matéria; o corpo, superfície.
A pedra pede luz; a luz, a extensa escuridão.
A glória pede um pão com manteiga; a insuficiência pede livros.
O tédio quer baralho; o jogo, paciência.
O pensamento quer ruptura; o estreitamento, imaginação.
A semente quer acolhimento; o encolhimento, a alegria.
O ódio quer sutura; a repressão, a orgia.
A utopia quer uma ilha; a inação, a folia.
A derrota quer a consolação; o desasseio, a pia.
O despropósito pede contenção; o vazio, contemplação.
A tarde pede cansaço; o embaraço, um sorriso.
A tolice quer o esquecimento; o problema, a ciência.
O impasse pede intuição; a distração, essência.
A poesia quer o mar aberto; a soberba luz, uma cortina.
O sangue quer passar, a seiva quer passar.
O tempo faz brotar e apodrecer. O tempo.
Uma árvore quer terra, busca a água e se espreguiça pelos ares.
Uma árvore comunga a terra, purifica o ar e traz a água.
A transição quer fogo; a chama, oração.
A palavra quer tudo; a mentira quer a verdade.
Mas a verdade não precisa da palavra.
A verdade existe além e apesar da palavra.
A verdade existe.
Ana Salvagni é cantora, regente e poeta