ZEZA AMARAL

Atestado de posse

Zeza Amaral
05/07/2015 às 11:36.
Atualizado em 23/04/2022 às 08:48
Colunista Zeza Amaral (Cedoc/RAC)

Colunista Zeza Amaral (Cedoc/RAC)

Por estas linhas, eu, o acima assinado, brasileiro de terceira categoria, confinado nas fronteiras da vida e livre nas emoções, por minha livre e espontânea vontade e declarando não ter sido seviciado, torturado, me proponho a entregar, por este Atestado de Posse, a uma mulher, por tempo determinado, já que a vida não é morte. Assim, a partir de antes — visto que o agora já se faz muito tarde — é dela todo o desespero do instinto dos homens que herdei e o descanso da minha carne. Mas que ela assim se faça, caso deseje também descansar; como assim também o faço, visto que todas as boas lembranças também têm seus féretros. E assim afirmo que é dela todas as minhas lembranças e os meus amigos de infância; é dela todas as histórias que o meu avô contava, e os meus sonhos mais secretos — onde eu era o mais bonito e corajoso dos meninos, um herói de todos os quintais do bairro do Taquaral. E dela será também as primeiras emoções sentidas, o primeiro cigarro de maxuxo, o filme proibido e o parto suado e dolorido do primeiro verso de amor que, desdenhado pela pretensa namorada, causou o primeiro porre e a primeira ressaca, os primeiros socorros de amor. E fui assim batizado às primeiras lágrimas da boemia, quase um pobre-diabo, quase um anjo que nunca fui. E a ela dedico todos as minhas suadas madrugadas de saudade, da minha avó, do meu avô, das mãos da minha professora guiando as minhas nas primeiras palavras. E somente dela será todas as paisagens que vi e vejo quando viajo pelos meus interiores caipiras, visitando e inventando planetas com seres calmos e belos; capinando um campo de rosas e lírios nos meus olhos de abelha, que não são meus, mas que são dos olhos da vida, todos eles que são os olhos dela. Todos os meus temores antigos também serão dela: morrer em desastre de trem, engasgado por espinha de peixe, abduzido por um disco voador, por aí; assim como a descoberta de que a morte não é nada — é apenas morrer — e que a traição de uma mulher é a fidelidade do amor que ela tem por outro homem; e que os discos voadores são apenas seres de um outro lugar passeando em suas limusines brilhantes pelo imenso espaço sideral. Todas as minhas insônias, bem como as desvairadas madrugadas que fiz num certo botequim, com os amigos de peito, paixão, cachaça e violão; como também a tristeza de procurar um verso escrito num guardanapo, sabendo que esse, como tantos outros, foi esquecido numa mesa qualquer de um botequim de esquina — tudo isso também será dela. Assim como todos aqueles versos serenos que fiz andando pelas ruas, de madrugada, descansando de quando em quando e bancos de praças, embriagado, e dos tantos que ainda não escrevi, mas que estão na minha boca e nas minhas mãos, à espera de melhores dias, noites e madrugadas e, talvez, de um bom banco de jardim... Tudo o que ela quiser será dela, tudo! O passado, o presente, o futuro, tudo será dela! Todas as paixões, as canções que fiz, aprendi, cantei, tudo! E quando velho e desdentado, já sem pernas para acompanhar seus passeios, me deixarei partir, sereno e feliz. E também esse prazer será dela. E assim, na tarde desta quinta-feira, quase morna, sem a presença de testemunhas, porque delas meu amor não carece, assino o presente crônico documento debaixo de uma tarde mormacenta e esperando a cara bonita da Lua carimbar o que é devido. E, sem mais, assino acima. E devo dizer que nada mais digo a quem quer que seja, sejam eles amigos, filhos ou desconhecidos que passam pela calçada da minha existência. Digo apenas que sou fiel aos meus princípios — e isso digo à moça que manda-em-mim; e ela bem sabe que faço isso por livre e espontânea vontade. Apenas e tão somente isso. Bom dia.

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