PASQUALE CIPRO NETO

'Assim eu quereria o meu último poema'

Pasquale CIpro Neto
01/05/2015 às 05:00.
Atualizado em 23/04/2022 às 15:08

O grande Paulinho da Viola é um dos maiores nomes da cultura popular do Brasil e, também, um dos poucos representantes do muito pouco de fineza que resta neste país, cada vez mais violento, rude, grosseiro e vulgar. Pois bem. Na belíssima e requintada canção “Choro Incontido” (melodia de Francis Hime, letra de Paulinho da Viola), encontra-se este trecho: “...meu abrigo / Onde guardo um sentimento / Para lembrar de um tempo / Que não vivemos mais / Quando você jurava / Que o nosso amor não morreria”. Qual é mesmo o nome do tempo verbal de “morreria”? É um desses que, infelizmente, a escola não explica. Já lembrou? É o futuro do pretérito, que, em outros tempos, era chamado de “condicional”. Por sinal, no verbete “condicional” o dicionário “Aurélio” classifica de “desusado” o emprego desse termo com o sentido de “futuro do pretérito”. De fato, em termos oficiais, o nome “condicional” não é usado desde 1959, quando a NGB (“Nomenclatura Gramatical Brasileira”) adotou a denominação “futuro do pretérito”. Na prática, porém, muitas pessoas (sobretudo as mais velhas) continuam chamando esse tempo pelo velho nome de “condicional”. Como se explica a denominação “futuro do pretérito”? Existe o futuro do passado? A bela letra de Paulinho nos ajuda a entender isso. Vamos repetir o trechinho? Vamos lá: “Para lembrar de um tempo / Que não vivemos / Quando você jurava / Que o nosso amor não morreria”. O que se conclui em relação ao “nosso amor”? Morreu ou não morreu? Morreu, sim, o que está mais do que claro na passagem “...um tempo que não vivemos mais”. E quando morreu? Antes ou depois dos juramentos? Obviamente, depois deles, certo? Chegamos ao xis do problema: a vida eterna desse amor está no futuro em relação ao juramento de amor eterno. Entendeu? Vamos lá: a vida eterna, isto é, a não morte do amor é fato futuro em relação às promessas de amor eterno (que se deram no passado, expresso pela forma “jurava”, do pretérito imperfeito). Feito! Está aí o tal futuro do pretérito, ou seja, futuro do passado, que, conforme acabamos de ver, expressa um fato futuro em relação a um ponto do passado.Como ocorre com qualquer tempo verbal, o futuro do pretérito não é usado apenas com seu valor específico. É possível empregá-lo, por exemplo, quando se quer indicar que não se tem certeza da informação veiculada. Esse emprego, por sinal, é cada vez mais comum na imprensa, em frases como esta: “O ladrão teria entrado pela janela do banheiro”. Com o emprego de “teria” (do futuro do pretérito), deixa-se claro que não se sabe ao certo se o ladrão entrou mesmo pela janela do banheiro. A imprensa tem exagerado no emprego desse recurso. O que quer dizer um jornalista que escreve algo como “Segundo o delegado, o assassino seria um ex-namorado da vítima”? Que o delegado afirma que o assassino é um ex-namorado da vítima, mas que ele (jornalista) não tem certeza disso? Ou que nem a polícia tem certeza disso? Talvez por excesso de precaução, os jornalistas usam o futuro do pretérito para se precaverem de possíveis reviravoltas no caso. Não é preciso chegar a tanto. Se o delegado afirma que o assassino é um ex-namorado da vítima, basta escrever “Segundo o delegado, o assassino é um ex-namorado da vítima”. Desse modo, não é o jornalista que afirma que o assassino é um ex-namorado da vítima; o jornalista apenas diz que o delegado afirma que o assassino é um ex-namorado da vítima. Nenhum texto que aborde o futuro do pretérito pode terminar sem uma referência ao poema “O Último Poema”, de Manuel Bandeira: “Assim eu quereria o meu último poema / Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais / Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas / Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume...”. O nosso grande Mestre emprega a forma “quereria”, do futuro do pretérito de “querer”, em correlação com uma condição implícita (“Se fosse possível, assim eu quereria o meu último poema”).

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