Entre 1964 e 1974, os artistas brasileiros Hélio Oiticica e Lygia Clark trocaram centenas de cartas, que foram selecionadas e publicadas pela UFRJ em 1998. Lê-las foi um dos maiores prazeres em minha pesquisa de mestrado. Lygia morava em Paris e dava aulas na Sorbonne.Hélio permaneceu no Rio de Janeiro, exceto por um pulo em Londres e outro em Nova York. Com textos longos, revelavam inquietações experimentadas na criação dos trabalhos. Pensavam não apenas a arte, mas a vida contemporânea. Compartilhavam segredos, angústias, indignações, fofocas, críticas, inseguranças e apoio. Eram amigos singulares e tinham consciência disso.Apelidavam-se de “a mão e a luva”: feitos um para o outro, calçavam-se bem, ainda que se soubessem diferentes. Ela era a mão, a interioridade. Ele era a extroversão em pessoa. Pois Lygia se voltava cada vez mais para a subjetividade, as questões da psique, o homem em desacordo com o sentimento de si. Hélio, por sua vez, debruçava-se sobre o contexto social, as políticas que interpelam os sujeitos, os estados de ser e estar no mundo. Ao longo das cartas, vemos a ditadura engrossar, a arte ganhar corpo, o vínculo ganhar força, o pensamento se transformar, o campo se expandir, o mundo girar e o Brasil se livrar do vanguardismo tardio.Existiu um movimento consecutivo chamado Arte Postal, do qual Paulo Bruscky é um dos representantes mais ativos, pois ele não apenas se comunicou com gente mundo afora como preservou as mensagens num arquivo maravilhoso, mantido em sua casa. O Museu de Arte Contemporânea da USP também teve papel decisivo. Sob direção de Walter Zanini, abriu chamados para manifestações de todo o tipo, que chegavam pelo correio e que hoje compõem um acervo abrangente o bastante para render décadas de pesquisa. Muitas são obras enviadas de lugares distantes, por vezes clandestinamente, procurando fugir de regimes opressores ou adentrar o nosso próprio. Porque, entre as forças da Arte Postal destacava-se seu potencial de resistência: estabelecer uma rede social ativa às escondidas dos militares, vencendo sistemas de averiguação e censura, mantendo aberto um canal de comunicação mesmo quando atos públicos eram rechaçados. Trabalhos e pensamentos que fluíam em circuitos ideológicos alternativos, sobrevivendo.Por fim, um terceiro ponto que nenhuma relação tem com aquelas artes: nos últimos tempos, adquiri o hábito de enviar cartas. Sim, ainda existem cartas tradicionais, escritas à mão (para minha felicidade, nem tudo que o carteiro deixa em casa é cobrança ou propaganda). Uma conversa diferente dos chats, e-mails e SMS. Aprendi assim que existe outro tempo de comunicação correndo em paralelo com a velocidade da internet. Tempo de reflexão, menos imediatista. Tempo de dedicação. Porque, quando uma carta chega, levo dias ou semanas para devolvê-la. Revejo tudo o que pretendo dizer, acrescento, corto, esmiúço, reescrevo. Essa mensagem levará dias ou semanas para atingir seu destinatário, que também demorará para ler e responder. A espera faz parte e tem seu valor.Não se trata de melancolia nem de dizer que o sistema de correio é melhor do que a internet. Nem pior. Seria uma bobagem enorme; passo o dia inteiro conectado à rede digital, não vivo sem. São coisas diferentes, e o antigo sistema é também interessante, em sua medida.Já faz cerca de dois meses que pensei em escrever sobre este assunto. Porém ele só ganhou sentido após as manifestações que têm chacoalhado o País, e que se organizaram, como sabemos, via redes sociais. Foi assim que me dei conta das informações que percorrem os diversos canais mantidos por nós, suas camadas de significado e capacidade de penetração.Pensei em como parece ingênuo expor intimidades na internet para quem quiser acessar e também em como seria inviável mobilizar cem mil pessoas para uma passeata com uso de selo, envelope e escrita à mão. Às vezes, o conteúdo simplesmente circula no canal inadequado.Vivemos um tempo em que diferentes camadas de tempo convivem. Embaralham-se, atropelam-se, embolam-se, ficam retidas ou extravasam. É um tempo de comunicação, sem dúvida. De manifestação, compartilhamento e conquista, seja na velocidade da luz ou no devir da reflexão.Tempo lento e rápido do pensamento. De transformação, de conexão entre todas as diferenças do mundo numa gigantesca e pródiga ambiguidade. Tempo de unir os fragmentos, não com intuito de descaracterizá-los, mas para que ganhem ainda mais força na fragmentação que os legitima.Acho isso tudo muito contemporâneo. E difícil de combater. Porque, quando a rede está bem trançada e mobilizada, não existe liderança clara nem hierarquia, não existe quem perseguir. Ficamos todos juntos no mesmo plano, tensionando aqui e ali. Sem cabeças para cortar ou estátuas para erigir. Na prática, as diferentes camadas de conexão nos mantêm unidos. Os fluxos de informação derrubam barreiras e aproximam territórios. Deixamos a Era dos Extremos, conforme o historiador Eric Hobsbawn batizou o século 20, para viver a Era da Comunicação. Unidos assim, entre dezenas de boas causas, realmente, tão cedo não seremos vencidos.