HISTÓRIA

As 'páginas amarelas' de Campinas

Livro traz detalhes da epidemia de febre amarela que quase varreu a cidade no mapa do século 19

Rogério Verzignasse
17/06/2013 às 08:36.
Atualizado em 25/04/2022 às 11:54

A Campinas da segunda metade do século 19 era uma cidade poderosa, com agricultura forte e fábricas brotando por todo canto. A chegada da ferrovia, o impulso do milionário ciclo cafeeiro e a emigração intensa já faziam dela a cidade mais importante do Interior. Mas seguidas epidemias de febre amarela, ao longo de uma década inteira, quase varreram a cidade do mapa. E a urbe precisou, literalmente, ser reconstruída para retomar o próprio desenvolvimento. As bibliotecas públicas e os centros de memória possuem vasto material sobre a doença que ceifou a vida de pelo menos 2 mil cidadãos na cidade. As novas gerações, no entanto, ignoram capítulos obscuros, e um pesquisador campineiro se propôs a passar a história a limpo.

Além de enaltecer o trabalho de cidadãos altruístas — muitos dos quais perderam a própria vida em benefício de semelhantes — o autor detalha acontecimentos que a memória oficial preferiu ocultar, ou simplesmente não destacar. Brigas políticas, manobras interesseiras e atitudes covardes marcaram o comportamento de cidadãos ilustres. A epidemia revelou a hipocrisia de uma classe dominante que, de repente, se viu impotente, ameaçada, desmoralizada.

A pesquisa detalhada foi elaborada ao longo de dois anos e meio por Jorge Alves de Lima, de 75 anos, advogado e ex-procurador da Prefeitura, que hoje ocupa a presidência do Instituto Histórico Geográfico e Genealógico de Campinas. No período, ele pacientemente anotou a mão, em cadernos, episódios curiosos que encontrava em livros, artigos, carta, atas e reportagens. E acaba de terminar o boneco do primeiro volume da obra 'O Ovo da Serpente', que promete presentear as novas gerações com informações inéditas sobre a peste e suas consequências. Neste volume, o autor detalha o primeiro (e mais grave) surto da doença. “Eu procurei contar a história da cidade em 1889, e fui relacionando episódios que precederam ou se sucederam à epidemia”, diz.

E as revelações são surpreendentes. Já se sabia, por exemplo, que Campinas tinha 12 mil moradores naquele ano. E que metade deles debandaram daqui quando a epidemia começou a matar em série. A pesquisa revela, no entanto, que cada cidadão cuidou da própria vida. Quem tinha para onde fugir não pensava em quem ficava para trás. Mas imigrantes, ex-escravos e lavradores paupérrimos, por exemplo, foram largados à míngua. Quem não tinha a febre, passava fome. E quase metade dos que ficaram morreram. Depoimentos de época, extraídos de livros históricos, contam quem as famílias rodeavam as vítimas em seus leitos de morte, em cenários sepulcrais.

Corpos de vítimas chegam ao Desinfectório Central: em um único dia, 58 mortes

No momento mais crítico, apenas três dos 23 médicos atuantes na cidade se dispuseram a permanecer por aqui e cuidar dos doentes. Campinas ficou sem governo. A Câmara teve as sessões suspensas entre 11 de março e 30 de abril daquele ano, porque só quatro vereadores continuavam na cidade. Todos os outro fugiram. Lima descobriu, analisando atas do poder público na época, que o principal hospital campineiro de então, a Santa Casa, se negou a receber mendigos doentes, por conta da falta de leitos.

“Intromissão”

Lima resgatou um editorial de fevereiro de 1889, logo depois dos primeiros óbitos, em que o 'Diário de Campinas' denuncia a precariedade completa da infraestrutura urbana. Terrenos baixos da cidade (como a gleba da atual Praça Carlos Gomes) eram imensos brejos com água acumulada e esgoto despejado. Diante do quadro, apurou o pesquisador, o governo paulista se encarregou de nomear uma comissão especial para executar obras estruturais na cidade. A inauguração do Desinfectório Central, a instalação de canais para córregos e as obras de saneamento fizeram a cidade renascer.

O que pouca gente sabe, no entanto, é que o governo municipal da época relutava em atender exigências feitas pelos técnicos indicados pelo Estado. “Políticos campineiros simplesmente não aceitavam o que diziam ser uma intromissão externa”, diz o pesquisador.

Para a historiadora Ana Maria Negrão, que prefaciou o primeiro volume da obra, o autor foi muito feliz em dar nomes a cidadãos que desconheceram a fadiga e o medo de contágio, e se dedicaram a minimizar o sofrimento dos infectados. “O leitor visualiza, a cada parágrafo, o êxodo de uma cidade elitista, que se tornava cada dia mais deserta, pois as pessoas abastadas fechavam suas casas e se refugiavam em fazendas”, considerou. O primeiro volume, de 210 páginas, já tem editora definida, mas não existe previsão de quando estará no mercado.

Registro mais antigo do Pais data de 1849

A febre amarela é uma doença infecciosa transmitida por mosquitos contaminados e historicamente ocorre na América Central, na América do Sul e na África. A doença infectou e matou milhares de colonos que, vindos da Europa, se radicavam por aqui. Os primeiros registros da doença no Brasil datam de e 1685, com a ocorrência de um surto no Pernambuco. Um ano depois, a doença fez vítimas na Bahia.

A febre amarela foi reintroduzida no Brasil em 1849 (primeira grande epidemia ocorrida na capital do Império, o Rio de Janeiro), quando um navio americano chegou a Salvador, procedente de New Orleans e Havana, infectando os portos e se espalhando por todo o litoral brasileiro. Depois que a doença arrasou a cidade de Campinas, novos casos voltaram a ser registrados no Rio,onde a infraestrutura sanitária era precária e muita gente vivia em cortiços. Época em que o Brasil amargou prejuízos enormes, porque os portos brasileiros eram evitados. As transações comerciais internacionais foram suspensas, o turismo acabou.

CURIOSIDADES

História trágia de amor 

A primeira vítima da febre amarela em Campinas foi uma jovem chamada Rosa Beck, nascida na Suíça. Ela vinha ao Brasil para se casar com Luiz Roberto Camargo de Souza Penteado, filho de uma abastada família da cidade. O casal tinha se conhecido em Paris, onde o rapaz estudou medicina. Mas ela contraiu a doença no próprio navio onde viajou.

Ao chegar em Campinas, ela se hospedou na casa de um conterrâneo seu, Ulrich Banninger, que possuía uma padaria por aqui. Acontece que a moça caiu em febre e não resistiu. Rosa morreu na madrugada do dia 10 de fevereiro de 1889, dois dias depois de chegar, e antes mesmo de rever o noivo. Quando o rapaz ficou sabendo que a moça estava em Campinas e morreu, ele mergulhou na depressão e, algum tempo depois, cometeu suicídio.

Os médicos idealistas

O médico Ângelo Simões

Dos 23 médicos que residiam em Campinas em 1889, apenas três rejeitaram a ideia de abandonar a cidade. Ângelo Simões, Germano Melchert e João Guilherme Costa continuaram prestando assistência às vítimas. Mas o idealismo custou caro. Quatro dos cinco filhos de Simões adoeceram e morreram. Em 1907, anos depois de controlada a epidemia, Simões se matou.

O jovem médico Costa Aguiar teve o cuidado de mandar a esposa e o filho pequeno para a fazenda do sogro em Itu, quando a doença crescia de maneira descontrolada. Ele permaneceu sozinho em Campinas, mas também acabou contraindo febre amarela. Quando o estado de saúde se agravou, ele foi levado para a mesma fazenda, onde seria tratado, mas morreu. Ele tinha 33 anos.

O dia mais cruel

Quinta-feira, 18 de abril de 1889. Aquele dia foi tenebroso. Data em que a epidemia de febre amarela provocou 58 mortes em Campinas. Os coveiros não davam conta de enterrar os corpos, e muitos deles permaneciam estendidos no chão, em frente do cemitério. Também havia cadáveres nas soleiras de casas abandonas, pois faltavam carroças fúnebres para o transporte. A situação trágica fez com que o governo paulista apressasse a formação de equipes formada por médicos para o atendimento domiciliar, delegados de higiene, desinfectadores. O grande nome daquela equipe era o sanitarista Emílio Ribas, que assumiu os serviços emergenciais de reestruturação da urbe.]

Um hospital improvisado

Irmã Maria

José Paulino Nogueira, que presidia a Câmara Municipal de Campinas em 1889, alugou dois imóveis no Guanabara onde podiam ser recolhidos e devidamente tratados indigentes contaminados com a febre amarela. O vereador afirmou em plenário (e isso está registrado na ata da sessão) que a Santa Casa, superlotada, recusava novas internações de pessoas não identificadas porque faltavam leitos. Diante do quadro, freiras que trabalhavam como enfermeiras na Santa Casa se ofereceram para trabalhar no “Hospital de Isolamento”. E uma delas, a irmã Maria dos Serafins Favre, acabou infectada pela doença e também veio a falecer.

Socorro aos pobres

Com a epidemia de febre amarela, as vendas estavam fechadas, não havia feira, ninguém trazia alimentos da roça. Os gêneros de primeira necessidade escasseavam e a fome se espalhava. Foi aí que os padres João Nery e Cipião Junqueira de Castro tomaram a frente de um serviço caridoso exemplar. Eles criaram a Sociedade Protetora dos Pobres, que reunia homens e mulheres que se ofereciam para alimentar os famintos. O próprio João Nery acolhia em casa os órfãos da epidemia. O empenho do religioso comoveu cidadãos como a dona Maria Umbelina Alves do Couto, que lhe ofereceu um terreno para a construção de um orfanato.

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