Rodrigo de Moraes, colunista, editor, Correio Popular ( Cedoc/RAC)
Perdoem-me se o título acima sugere que eu vá discorrer de forma edificante sobre algum sábio do Oriente Médio e seu discípulo cabeça-dura. Quem me conhece sabe que esse não é o meu departamento. Refiro-me ao cantor paquistanês Nusrat Fateh Ali Khan (1948-1997). Uma sumidade em seu país, ele foi o principal representantes do chamado qawwali, a música devocional dos sufis, os místicos do Islã. Antes restrito a locais de culto, o qawwali ganhou notoriedade na Europa e Américas com a imigração e com o surgimento, nos EUA e Europa, de selos fonográficos da categoria “world music”, voltados a divulgar o trabalho de artistas não ocidentais ou que dedicam a sonoridades não ocidentais. Com essa popularização, Ali Khan foi elevado ao status de superstar e gravou com ícones pop como Peter Gabriel e Eddie Vedder. Foi no disco 'Community Music' (2000), do Asian Dub Foundation, grupo britânico formado por filhos de imigrantes paquistaneses, que primeiro me familiarizei com o nome do cantor. O disco traz duas referências a ele: em uma faixa, sua voz, sampleada, é envolta por um arranjo que mistura percussão, guitarras e efeitos eletrônicos; em outra, Ali Khan é mencionado como um dos ídolos que deram conforto e coragem às gerações anteriores de imigrantes para enfrentar as agruras da vida em terra estrangeira. Eram essas as referências que eu tinha do artista, alcunhado, com justiça, de Shahenshah-e-Qawwali, o “Rei dos reis do qawwali”. Até que descobri no YouTube, há alguns meses, uma apresentação realizada por ele e seu grupo em Coventry, Inglaterra, em 1985. Ele e os músicos que o acompanham — com tablas, harmônios (primos do acordeão), palmas e cantos — estão, comme il faut, sentados no chão do palco. Do pouco que conheço do qawwali, sei que os grupos se dedicam a longas sessões de improviso em torno de temas tradicionais do sufi. No vídeo em questão, após uma introdução instrumental (de semelhança espantosa com lambada e congêneres nortistas/nordestinos), tem início um cântico solene, profundo, como que vindo do oco do tempo. Aboletado à direita do palco, enorme (ele chegou a pesar cerca de 140kg), Nusrat domina a cena. Herdeiro de uma antiquíssima linhagem familiar de cantores qawwali, ele entoa versos com uma carga arrepiante de sentimento, e mal parece fazer força para tal. Embora o timbre de sua voz não supere em beleza as dos excelentes cantores que o acompanham, a exuberância de sua figura é imbatível. Mas algo que me chamou especial atenção nessa performance foi o gestual de Nusrat Fateh. Como um religioso comandando uma cerimônia, ele pontua seu canto com movimentos muito expressivos das mãos. Ora mostra os punhos cerrados à frente do peito, os cotovelos em ângulo reto, ora projeta o braço direito para frente, os dedos estendidos em direção à plateia, ora pontua a cadência da música com o indicador, como se estivesse martelando uma única nota em um teclado. As mãos, enormes porém graciosas de Nusrat, são, eram uma extensão de sua persona. Sempre que assisto ao referido vídeo (no YouTube, pesquisem pelo cantor mais os termos “Ankh Uthi Mohabbat ne Angrai Lee”, que é o nome de uma das canções) tento imitar os seus gestos, em vão. Há algo neles, uma precisão que fica no meio do caminho entre a eloquência e a economia, que não consigo captar. Me resta o assombro com seu canto, capaz de tocar o mais petrificado dos corações — ou assim quero crer.