FABIANA BONILHA

As coisas mínimas

Fabiana Bonilha
igpaulista@rac.com.br
17/08/2013 às 05:01.
Atualizado em 25/04/2022 às 05:07

iG - Fabiana Bonilha (Cedoc/RAC)

Tenho um especial apreço pelas coisas mínimas, isto é, pelas coisas que, em sua pequenez, revelam paradoxalmente sua grandeza. As coisas mínimas são aquelas que cabem na palma da mão, ou que podem ser facilmente contempladas com as pontas dos dedos. Elas são frágeis e delicadas, mas a força que contêm penetra em nossa alma e nos toca profundamente.Uma caixinha de música é para mim um dos exemplos mais notórios e representativos de uma coisa mínima. A delicadeza dos sons que ela emite nos coloca em atitude de um respeitoso silêncio, que nos possibilita ouvir com atenção os detalhes do que ela nos tem a comunicar. Geralmente, este tipo de equipamento toca alguma canção bem conhecida e até mesmo desgastada pelo tempo, mas dentro da caixinha, com aquela cor suave e brilhante, a música outrora tão familiar ganha para nós um novo sentido.Lembro-me da primeira caixinha de música que ganhei, quando eu ainda era pequena, e recordo que, curiosamente, ela representou um marco em minha formação musical. Na ocasião, por volta de meus sete anos, eu iniciava meus estudos de piano, e estava em tempo de descobrir todas as particularidades do meu instrumento. Encantada com o novo presente, decidi aprender por conta própria a execução ao piano da canção tocada pela caixinha. Entretanto, ao tentar tirá-la, notei que havia algo diferente naquela música, que não condizia com os padrões de notas e de escalas que eu tinha aprendido até então. Depois de muito empenho, descobri, em meio à minha exploração musical, que tratava-se de uma melodia em tom menor, e que sua configuração era diferente das melodias em tom maior, que eu já havia estudado. De um jeito quase intuitivo, e sem saber muito como dar nome ao que descobrira, fui, devagarinho, assimilando as notas daquela peça, e tocando-as na região mais aguda do piano, em imitação aos sons agudos da caixinha. Era uma canção em fá menor, bem simples, mas cheia de riquezas harmônicas, talvez um pouco complexas em relação aos meus conhecimentos adquiridos em tenra idade.Foi portanto desta maneira lúdica e singela, que uma caixinha de música, uma coisa tão mínima, me ensinou a importante diferença entre tom maior e tom menor.Assim como essas caixinhas, cada ponto constitutivo do sistema braile também pode ser considerado como uma coisa mínima. Um ponto em relevo tem grande importância por constituir a unidade básica de um sistema essencial à vida dos cegos. No tocante ao braile, os pontos nos chegam às mãos em forma de palavras, mas para isso, todos eles precisam ocupar corretamente seus devidos lugares, do mesmo modo como as células que compõem um ser humano precisam estar minuciosamente dispostas.Pelo que sei, as coisas mínimas agradam particularmente a Deus. Ele mesmo, querendo estar entre nós, se fez pequeno como uma criança, e, para os cristãos católicos, continua se fazendo presente em uma mínima partícula de pão.Suponho então que amar seja uma coisa mínima também, pois o amor se revela em pequenos gestos de ternura, que se espalham como minúsculas sementes levadas pelo vento, e que brotam nos corações prontos a acolhê-los.*Fabiana Bonilha, Doutora em Música pela UNICAMP, psicóloga, é cega congênita, e escreve semanalmente no E-Braille. E-mail: Fabiana.ebraille@gmail.com

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