Mixologia: no balcão do Nosotros, Rafael de Araújo exercita seu talento em criar e executar receitas de coquetéis que encantam e surpreendem os paladares mais curiosos
Mixologista na exata definição do termo, Rafael de Araújo, de 33 anos, estuda, milimetricamente, as tantas variáveis que tornam um drinque perfeito. Garante que pode elaborar coquetéis do que quer que seja, embalado pela variedade de ingredientes locais, pela gama de destilados e afins, daqui e da gringa e perenemente motivado pela vibe do cliente. Neste ponto do calendário, ele está exercitando a expertise em algum balcão londrino, onde viveu por 13 anos e iniciou a carreira, a convite de um festival de música de peso. Atua como consultor reconhecido, lá pelas bandas das terras da rainha da Inglaterra e arredores. Para a nossa sorte, desde outubro do ano passado, o trabalho do bamba pode ser acompanhado ao vivo, diariamente, no bar do restaurante ibérico Nosotros, onde é sócio.
Na Europa, o especialista ceifou diversos prêmios ao longo de 13 anos de carreira. Aqui, onde voltou a morar há quase três anos, comemora o início do reconhecimento. “Apesar de toda a experiência, é como se recomeçasse. Entendo que tenho a missão de educar os clientes a provar novas bebidas; mostrar que além da caipirinha e da cerveja gelada há uma carta infinita de drinques à prova. Estou disposto a contribuir com esse universo em que ainda há pouca demanda de profissionais”, situa.
Em maio, a convite da Grand Marnier, famosa marca francesa de licores que nasceu no coração da região de Cognac, ele foi a Paris, como representante de Campinas, esmerar-se em novas técnicas e referências. Durante a viagem-prêmio (o bar do Nosotros foi eleito um dos melhores do País), travou prosa franca com outro representante brasuca, o Mestre Derivan, figura carimbada nos últimos vinte anos da história da coquetelaria e tido como referência primeira no setor. Palmilhou, ainda, alguns dos mesmos espaços clássicos pelos quais figuras como Ernest Hemingway passaram, caso do Harry’s New York Bar, onde se pôs a compreender certos vestígios da profissão.
Das conclusões elaboradas até aqui, ele pondera que, de certa maneira, o barman, no Brasil, ainda é visto como alguém que faz seus “flairs” com uma coqueteleira, tal se vê no filme do Tom Cruise (Cocktail, de 1988). Ocorre que a carreira evoluiu para muito além da preparação de bebidas e do atendimento de bar. Ao mesmo tempo em que os bartenders vêm resgatando a execução exata de drinques clássicos, boa parte deles padronizados ao longo dos últimos 50 anos (ou desde a criação da International Bartender Association), há um novo viço de estímulo à criatividade.
“Estamos no início de um novo momento da coquetelaria que tem como ícone, aqui no Brasil, o Mestre Derivan, tão defensor da qualidade dos coquetéis quanto eu. Sabemos que o mixologista é um especialista que, de forma complexa, estuda as propriedades de ingredientes e especiarias, aromas, destilados, desenvolve xaropes e licores que servirão de base a drinques peculiares. Então, posso traçar um paralelo com o trabalho dos chefs de cozinha. Eles criam pratos autorais. Nós, bebidas”, compara.
Harmonizações
Ele pondera, também, que a influência de apetrechos e pós mágicos da cozinha tecnoemocional, desvelada na última década pelos espanhóis, vem sendo incorporada aos bebes, mas de forma ainda mais pontual que na gastronomia. “O que faz muito sentido. Acho que, antes de impressionar visualmente o cliente, temos de educar o paladar para bebidas e produtos.”
Daí apostar que o aroma do charuto cabe no copo. Que pimentas, geleias e vinagres, idem. “Alho serve muito bem ao bloody mary, trufas negras agregam sabor a certas receitas. Cerveja pode virar excelente coquetel. A sobremesa pode ser líquida. Enfim, se levadas em conta as técnicas, as harmonizações possíveis, as combinações entre ingredientes frescos com álcoois ou refrescos, difícil não criar um coquetel interessante”, provoca o mixologista.
Ao lado do chef, amigo e sócio André Bearzotti, a quem conheceu em Londres, durante a passagem de ambos pelo pub The Engineer, Araújo vê a criatividade se aguçar em dobro. Afinado, o duo tem trabalhado em harmonizações coerentes a partir de ingredientes inusitados – meia dúzia de sugestões podem ser conferidas na lousa e outras 30 na carta de drinques do bar Nosotros. “Aliás, a carta é só uma carta. Levo em conta o que o cliente gostaria de provar antes, durante e depois de uma refeição, então converso com ele. Se ainda assim ele me disser que não sabe o que quer beber, frase que mais ouvi ao longo da vida, eu saberei como surpreender e agradar”, diverte-se.
Quanto às bebidas alcoólicas que emprega, Araújo diz que ainda patina para conseguir achar alguns rótulos. Aos poucos, vai estruturando seu estoque com runs, uísques, tequilas e eteceteras que costumava usar em Londres e dos quais não abre mão. “Caldas, xaropes, licores e muitas outras coisas que não encontro eu mesmo desenvolvo e estou atento aos artesãos da gastronomia. A paixão pela cachaça eu já desenvolvi”, entrega.
Mistura própria
Pois se os britânicos consomem mais cachaça hoje, parte da responsabilidade é de Rafael de Araújo. Apaixonado pela bebida, ele rodou o Brasil atrás de rótulos de peso e levou 77 deles, a maioria de pequenos produtores, para a Made in Brasil, primeira cachaçaria (e também bar e restaurante) de Londres, aberta em 2004 e que ainda faz sucesso em Camden Town. “Vendi o negócio para um amigo, mas foi muito bacana trabalhar no processo de educação do paladar do britânico, que só conhecia duas grandes marcas, até então, e tinha experimentado uma ou outra caipirinha na vida. As feitas à base de cana, mandioca, batata, todas passaram a ser conhecidas e degustadas puras, como nós fazemos”, conta. A ideia do especialista é desenvolver aqui um trabalho educativo assemelhado. Apresentar aos brasileiros os outros idiomas do beber.
Paulistano do tipo “cidadão do mundo”, diz que nunca fez um curso formal até então. Aprendeu foi na “marra”, olhando por cima do ombro do primeiro barman que topou na vida, aos 18 anos, quando a pretensão era aprender só inglês e morar fora do País. Para segurar a onda da grana, ele passou pelo Jazz Cafe, Pappagaio, The Engineer, The Cobden Club (em Notting Hill) e outros bares, sempre atuando como barman, bartender, mixologista, conforme a evolução. E até se virou nos trinta como designer e tatuador por um período. Graças à expertise como mixologista, ao longo dos últimos seis anos, tem coordenado a seção de bebidas de grandes festivais europeus (SWU, Lollapalooza e afins) e realizado eventos personalizados a convite.
“A consultoria é algo que faz parte da minha carreira, mas não penso em sair daqui do Brasil, já que estou numa fase bacana. Em time que se ganha, não mexe. Só acho que um dos principais problemas de quem está no ramo de alimentos e bebidas é a carência de mão de obra qualificada. Posso até treinar um bartender para executar os drinques que criei, mas não encontrarei bartenders prontos no mercado. Por isso, um dos meus maiores sonhos, agora, é abrir uma escola de formação por aqui.”