ZEZA AMARAL

Armorial e Casablanca

12/05/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 16:41
Colunista Zeza Amaral (Cedoc/RAC)

Colunista Zeza Amaral (Cedoc/RAC)

“Entre a verdade e os infernos, dez passos de claridade, dez passos de escuridão”, escreveu Hilda Hist.

A hora é triste quando a noite se amanta sobre o corpo ainda quente do dia que se entardeceu para nunca retornar, a não ser na memória machetada de lembranças sinceras.

Hilda está conversando sobre um cachorro adoentado que ela recolheu na estrada. Dante Casarini, seu marido, acaba de chegar e sozinho tira da carroceria da camionete um pesado tronco enrugado e sujo de terra. Estou hospedado na casa desde a noite anterior, bebendo e nos fartando de música e uísque.

Dante viu o tronco caído em algum lugar próximo e naquela manhã foi buscá-lo porque finalmente viu nele a figura de uma mulher. Ele esculpia madeira; Hilda entalhava palavras.

Entre a verdade e os infernos, dez passos de claridade, dez passos de escuridão...

Ainda tenho em mim o som desses versos no ouvido, Hilda sussurrando sua poesia e aquietando as angústias entre Deus e o Diabo, nos ensinando o caminho da dúvida e da certeza. E desde então tudo se tornou cinza e assim permanece até hoje.

Os tempos eram acinzentados como as antigas películas em preto e branco. Casablanca e Campinas. Armorial e Rick’s Café. Bogart e Ingrid Bergman. Hilda e Dante. A cidade estava ocupada por agentes do Dops, Doi-Codi e Cenimar; Casablanca era terra francesa de Vichy. Mas o cinza predominava. Sam e Paulo Afonso. Ambos tocavam piano e a mesma música: As Time Goes By. Max Steiner e Oswaldo Guilherme.

Maysa fazia ainda fazia sucesso com Franqueza e a cantora do Armorial, Maria Aparecida, voz aveludada, aguçadamente afinada, enternecia os nossos cinzentos corações. Hilda dançou naquela noite e seguia a música cantando baixinho e de olhos fechados. Ela ficou surpresa ao saber que o autor da canção era campineiro. Finda a madrugada, Jota Toledo convidou a todos para uma dose matinal em seu ateliê e lá ficamos trocando tertúlias e curtindo horas vagotônicas.

Perto do almoço, levei Hilda para conhecer Oswaldo Guilherme em seu escritório. Trocaram palavras delicadas e se despediram após um café no Bar dos Bancários (quem se lembra desse café, meu Deus?).

Solange e Ângelo Lepréri. Ela, francesa; ele, italiano. Casablanca era aqui. Hilda era Ilsa Lund e Dante Casarini o seu Victor Lazlo. E a sua poesia tinha o peso de uma Serra da Mantiqueira. Nada era gratuito e sem sentido. A paixão chegava aos extremos da consequência e a vida em dúvida era a aventura a que permitíamos gozar.

Entre a verdade e os infernos, dez passos de claridade, dez passos de escuridão...

... e o planeta se tornou colorido e qualquer dúvida pode ser resolvida com um clique no Google. Música pode ser feita por um computador e jovens andam com a cueca de fora e dançam e cantam coisas esquisitas. Hilda Hist e Jota Toledo em boa hora zarparam daqui. Dante Casarini só encontro na memória e não me agrada procurá-lo nos neurônios cibernéticos.

Vou procurar Casablanca em alguma locadora e dar uma escapada da estampa colorida e brega que fizeram do futuro. O que essa gente tem contra o cinza, hein?

Bom dia.

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