ANTONIO CONTENTE

Aqueles navios encantados

Antônio Contente
22/04/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 19:35

Eu acho que a marca registrada da antiga série de TV A Ilha da Fantasia era o grito do anão Tatoo, a anunciar: “O avião! O avião”! Lembro-me disso agora, pois, do mesmo jeito, na Amazônia de outrora, um berro, no trapiche da pequena cidade de Mocajuba, Rio Tocantins, meu chão da infância, chamava para a chegada de algo que, como o hidroavião do filme, também trazia para nós sonhos e fantasias: “O navio! O navio”! E logo a coluna de fumaça que a chaminé da embarcação soltava se transformava numa espécie de chamamento. Que só crescia, depois que o gaiola dobrava a curva da ilha de Sant’Ana, subindo o curso d’água.Ao recordar hoje, depois de tanto tempo, tais navios, tenho dois momentos. Um, na segunda metade dos anos 40, eu bem guri, vendo pela primeira vez o “Almerim”. Outro, já nos 50, quando ele foi substituído pelo “Três de Outubro”. Ambos, gaiolas; ambos, construídos nos estaleiros de Southampton, Inglaterra. Só a visão de tais barcos a deslizar no rio imenso, era um deleite. Imagino que representavam o que, também em outras épocas, representaram para o Interior de São Paulo os trens. Entre meus vários amigos paulistas filhos de ferroviários, talvez o que saiba mais histórias que perpassaram pelos trilhos seja o professor campineiro, nascido em Casa Branca, Heitor Palma Nascimento. Estou insistindo para que escreva um livro sobre essas memórias.Sim, mas eu falava dos gaiolas que guardavam vários encantos. Por ser o único elo entre as isoladas cidades ribeirinhas e a capital, as embarcações chegavam para materializar sonhos. Trazendo mercadorias e pessoas; em torno disso movendo toda uma cadeia que se desdobrava para enriquecer meu dia a dia de moleque. Jornais, por exemplo. Os navios traziam matutinos da capital, atrasados, é verdade; mas, mesmo editados há mais de uma semana, inundavam minha cabeça de atualidades fresquíssimas. Livros, não só os que algum vendedor itinerante oferecia como os que os parentes mais velhos encomendavam, era outro produto esperado.A primeira vez que embarquei num gaiola foi no “Almerim”. Possuía camarotes, sala para refeições, amuradas nas quais dava para debruçar a fim de quase poder tocar flores e folhas das florestas nas margens. Nas largas baías sem terra à vista, em tardes de rajadas se formam ondas de mar; então o velho gaiola tinha a proa levantada para, depois, cair adiante a esparramar espumas que se desfaziam aos ventos. À noite, sob céu de tantas estrelas, era como se o paquete entre elas deslizasse por ter, enfim, chegado ao verdadeiro porto ao qual as fantasias pertencem.O chamamento para caracterizar o verdadeiro significado das embarcações, é que quando elas saiam de Mocajuba para o próximo destino, parece que nos devolviam ao silencioso e restrito mundo da cidadezinha com apenas três ruas paralelas ao rio e oito transversais.Hoje, para chegar à outrora ínfima localidade, há estrada de asfalto ligando-a à capital. Barcos ainda fazem a rota pelo rio, mas os gaiolas de fabricação inglesa sumiram faz tempo. E é exatamente aqui que começa o mistério, restrito às pessoas com mais de 60 anos. “Almerim” e “Três de Outubro” não existem mais, viraram sucata ou estão jogados em algum cemitério de navios. Porém para nós, os mais velhos, os paquetes ainda existem. E normalmente reaparecem, em noites sem lua, garbosos, iluminados, a trafegar pelo meio das correntezas a levantar banzeiros. Eu mesmo já os vi muitas vezes, não só na superfície do grande rio, mas aqui mesmo diante desta Ilha, onde de vez em quando passam pelo meio da baía imensa que se abre à frente da minha choupana. Até a música de bordo me chega aos ouvidos; capazes, aliás, de também ouvir e entender estrelas...Alguns ribeirinhos afirmam que tais aparições dos velhos barcos na verdade são cobras grandes, boiunas, anacondas de tamanho descomunal que em certas noites enfeitiçadas neles se transformam. Para atrair pescadores descuidados, ou apenas incautos, que, vendo os gaiolas cintilantes para eles acenam, embarcam, sendo então levados para o mundo das neblinas que se formam entre os orvalhos das madrugadas.Ontem à noite, quando apareceu diante de mim o “Almerim”, pensei em chamá-lo. Afinal, tenho uma viagem programada, e é nele que embarcarei. Mesmo tendo certeza que, quando ocorrer, será para sempre...

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