RODRIGO DE MORAES

Antropofagia

Rodrigo de Moraes
rodrigo@rac.com.br
18/02/2015 às 05:00.
Atualizado em 24/04/2022 às 00:03

ig - Rodrigo Moraes (CEDOC)

Há muitos anos, ainda na faculdade, escrevi algo sobre a sonoridade de palavras que designavam algumas das muitas mazelas brasileiras. Era um texto, breve, a propósito do apagão que, na noite de 11 de março de 1999, deixou 10 estados e cerca de 31 milhões de almas no escuro por até quatro horas e quinze minutos.   Observei a recorrência do sufixo “ão” — “o principal formador de aumentativos em língua portuguesa”, segundo artigo publicado no site da USP — em termos como “corrupção”, “inflação”, “recessão” e o próprio “apagão”. Anos depois, nosso vocabulário de indignações ganhou, como se para corroborar a minha ideia, palavras como “mensalão” e “petrolão”.   A própria imprensa, que desempenha papel crucial em moldar o falar cotidiano e ao mesmo tempo reflete esse falar, parece ter abandonado a prática de agregar a terminação “gate”, de “Watergate”, para designar os escândalos que estouram de maneira cíclica no nosso maltratado país e adotou o tal aumentativo.   Há, claro, a conspícua exceção representada pelo termo inglês “impeachment”, que voltou a ser evocado nos últimos meses (inclusive por alguns equivocados que também pediam “a volta dos militares”) a propósito de responsabilidades nos gigantescos desvios de erário na Petrobras, mas essa é, como disse, uma exceção.   Houve até uma tendência, não por acaso nos malfadados anos Collor, de criar o verbo “impichar”, mas isso é algo que não colou — pelo menos não até agora.Por outro lado, acho interessante que, diante da tendência do brasileiro incorporar anglicismos na fala do dia a dia, a palavra “apagão” tenha prevalecido sobre “blecaute” (do inglês “blackout”), cujo emprego parecia consagrado.   O sufixo “ão”, arrisco, parece desempenhar o papel de dar enlevo às crises de forma quase galharda, em consonância com um ceticismo próprio do brasileiro, como se quase não levássemos a sério não o problema em si, mas a promessa de autoridades de que as questões — envolvendo desde má gestão, omissão e incompetência a roubalheiras, desvios e tráfico de influência — seriam, serão, exemplarmente punidos.   Também acho interessante que, dentre os aparatos eletrônicos e afins que se tornaram onipresentes no cotidiano, um deles se consagrou como um curioso híbrido idiomático. De nome quase maroto, o pau de selfie, para quem não sabe, é aquele bastão utilizado para fazer autorretratos, os “selfies”, com câmeras digitais e celulares. Fosse seguida a regra não escrita, o nome do acessório ficaria estabelecido como “selfie stick”. Mas não foi, curiosamente, o que se sucedeu.   Talvez por soar muito parecido com “sofistique”, talvez por buscar-se um nome irreverente, ou seja lá por que correntes misteriosas que conferem dinâmica à língua, optou-se pela primeira forma, que ganhou lugar definitivo no nosso léxico. Nos anos 20, o "Manifesto Antropofágico" do modernista Oswald de Andrade pregava a deglutição metafórica de culturas estrangeiras — que, dizia ele, não deveriam ser negadas, mas tampouco imitadas.   Enxergo aí, pois, um meio termo no qual o pau de selfie, um aparato que alia o mais rudimentar dos instrumentos a aparatos de “última geração”, parece ilustrar de maneira exemplar.

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