Volto a Fevereiro de 1969, ao Projeto Rondon. É fácil imaginar que nas cidades que trabalhamos, atendemos em sua grande maioria pessoas com queixas intestinais provocadas provavelmente por “verminose” e outras com doenças de pele. Tínhamos disponíveis vermífugos e treinamento para fazermos orientações sobre as medidas básicas de prevenção. Um paciente, no entanto, marcou nossa estreia profissional. Foi um senhor com cerca de 60 anos que atendemos em uma choupana, numa fazenda pouco distante da cidade de Pontes de Lacerda. Ele tinha “barriga d’agua”. Imensa, a maior que eu e o Zago tínhamos visto em “nossa larga experiência” de quase quintanistas de medicina. Tinha também falta de ar e há vários dias urinava muito pouco ou quase nada. Auscultamos seu tórax, confirmamos examinando seu abdome os sinais de ascite que tínhamos aprendido há pouco tempo. Não tivemos duvida: insuficiência cardíaca congestiva! A maior que a havíamos visto em nosso curso de semiologia na Santa Casa de Misericórdia e nas enfermarias do Hospital das Clínicas. Conhecíamos as condutas básicas da época para essa situação clinica, pois acompanhamos em nossos estágios pacientes com queixas similares. Nunca havíamos, no entanto, assumido sua condução por nos mesmos. Surgiu então outro problema: onde obteríamos os medicamentos? Não havia farmácia na cidade, mas nos informaram que havia muito medicamento em uma casa recentemente abandonada por de uma missão religiosa. Ela fora comandada por missionarias holandesas. Lá fomos verificar o que havia nesse ambulatório abandonado. Era uma choupana com o interior empoeirado e muito medicamento espalhado por algumas prateleiras e mesas, porém, todos com bulas escritas em holandês. O Zago, sempre muito curioso e estudioso em línguas, procurou e encontrou caixas de diuréticos e de digoxina (era o que sabíamos prescrever). Decifrou o principal na bula, em especial as doses, e com muito medo, especialmente porque filhos do paciente andavam armados, medicamos o paciente que depois de algumas horas passou a eliminar um grande volume de urina, melhora da falta de ar e mais disposição. Sucesso total! Para nossa surpresa e decepção soubemos, depois de algumas semanas, quando já estávamos em outra cidade, que a família do paciente abandonara o tratamento e sua condição clinica. Em nossas andanças pelo Mato Grosso dormíamos em camas do exercito americano, montadas em lugares variados como barracões de maquinas de beneficiar arroz, choupanas de pau a pique ou casas do DER que existiam na região. Em Jaurú tivemos uma grata surpresa. Havia um pequeno hospital de um jovem médico paulista que ali se aventurara a exercer medicina. Chamava-se Dr. Hélio Ribeiro, nome fácil ser lembrado mesmo depois de 45 anos, pelo seu homônimo, um famoso comunicador da Radio Tupi de São Paulo. Quando soube que havia na cidade dois estudantes de medicina nos convidou para conhecermos seu hospital e o mais importante, para atender e dormir no próprio. Imaginem a satisfação, depois de dormirmos por algumas semanas em condições precárias passarmos a desfrutar de um quarto limpo, com cama e lençóis cheirando a recentemente lavado. Outras histórias serão sempre por mim lembradas deste mês de trabalho no planalto central. Ao escrever este texto procurei nas paginas da internet imagens recentes das cidades que visitamos. São hoje cidades de pequeno e médio porte. Pontes e Lacerda têm 43.000 habitantes, Porto Esperidião, 12.000 habitantes e Jaurú 13.000 habitantes. Vê-se que todas têm ruas asfaltadas, luz, agua e esgoto. Vejo em Pontes e Lacerda imagem de edifícios! Tenho entre minhas “relíquias” da passagem por este projeto, dois cadernos onde anotei os nomes das pessoas atendidas e as suas hipóteses diagnosticas. A maioria tinha verminose, úlceras nas pernas (ulcera de Bauru?), anemia. Tenho até algumas anotações sobre orientações dadas. Provavelmente se lá voltarmos nos dias de hoje, trataremos de pacientes hipertensos, obesos e com colesterol sanguíneo elevado. Foi a evolução de nossa sociedade. Entre 1967 e 1989, quando foi extinto, o Projeto Rondon envolveu mais de 350 mil estudantes, de todas as regiões do País. Em 2005 foi relançado a pedido da União Nacional dos Estudantes (UNE).