Comportamento

Ai que saudade...

Distanciamento social tem levado pessoas a refletirem sobre a falta que fazem as vivências do cotidiano da vida

Kátia Camargo
09/08/2020 às 09:00.
Atualizado em 28/03/2022 às 19:29

“Saudade: substantivo feminino. Sentimento melancólico devido ao afastamento de uma pessoa, de uma coisa ou de um lugar. Ou ausência de experiências prazerosas já vividas”. Foi começando a definir o sentimento tão peculiar embutido nessa palavra exclusiva da língua portuguesa, em um monólogo postado em suas redes sociais, que o ator paraibano Thardelly Lima levou muitas pessoas a refletirem sobre as saudades que estavam sentindo neste momento de distanciamento social. Afinal, quem não anda saudoso do cotidiano da vida, das pessoas queridas, dos encontros, das conversas boas, dos cafés com os amigos, com a família, e até de sentar-se ao lado de um desconhecido em uma mesa de um bar? Thardelly, que viveu o prefeito Tony Júnior no filme Bacurau, premiado em Cannes, na França, usou como pano de fundo uma linha de trem (cenário associado à saudade), próxima ao sítio dos seus sogros, para falar sobre algumas saudades suas. O monólogo fala da saudade de ir e de vir, saudade de vô, saudade de vó, da mãe, do pai, saudade de quem já não está mais entre nós, saudade do público, saudade de chegar ao estabelecimento e ser mal atendido, saudade de jogar bola com os amigos, do churrasco, de ir na esquina falar da vida do outros. Enfim, saudade da vida e de gente! Em entrevista para a Metrópole, o ator conta que começou a escrever o texto após sentir muita inquietação de estar distante do público, do palco, por vários meses. “Assim que começou a pandemia eu e minha companheira Helena viemos para o sítio dos meus sogros. A conexão com a natureza, o dia a dia, a saudade doída, fez com que a gente buscasse um jeito de tentar falar para os outros o que estávamos sentindo. Foi assim que nasceu ‘Saudade pinica’”, conta. Thardelly diz que sua maior vontade é de voltar a trabalhar artisticamente. “Não vejo a hora de voltar a fazer as produções, assistir os outros no teatro, no cinema. Estou com saudade do palco e da rua. Antes da pandemia eu viajava muito com um espetáculo que passava por cidades pequenas e se apresentava em praça pública. Sinto muita saudade de aglomerar com essas pessoas”, conta. O ator espera que em breve possa voltar ao trabalho. “Agora, por conta da pandemia muitos trabalhos estão paralisados. Tinha alguns encaminhamentos de produção de cinema e passei no teste para uma nova novela da Globo que iria estrear em julho. Aguardo ansioso e cheio de saudade pelo momento de voltar ao trabalho”, conta.         Cotidiano vazio A regente e cantora Ana Salvagni conta que sente saudade de encostar nas pessoas queridas, ficar pertinho, roçar, dar um abraço, um beijo. “Sinto saudade de caminhar em volta da lagoa no meio de outras pessoas, tomar sorvete rodeada de gente, saudade de andar pela cidade em um sábado de manhã, andar pela feira da Praça do Coco em Barão Geraldo. Saudade de encontrar casualmente os amigos, parar, aqui e ali, para ver as coisas bonitas e conversar com as pessoas”, conta. Ela também sofre com a ausência do trabalho. “Saudades dos ensaios de coral, ensaios do grupo vocal. Ensaiar com outros músicos, cantar. Cantar para uma plateia, seja ela grande ou pequenininha, não importa. Cantar para cada um que queira me ouvir”, diz. O cotidiano da vida também a tem deixado muito saudosa: “Saudade de ter uma tarde tranquila em que eu possa sair e fazer coisas não urgentes, que deixamos pra fazer quando surge um tempo. E aí entrar e sair da vidraçaria, costureira, armarinho, papelaria, entrar em um café, comer um pão de queijo. Saudade de viajar”, conta Ana. Escola sem alunos? A professora de Ensino Fundamental Maria de Lourdes Silva Souza conta que sente saudade da rotina da escola, dos alunos, do barulho, das brincadeiras, da vida pulsante dentro de uma sala de aula. “Vemos o quanto é gostoso estar com as crianças, apesar do barulho, da inquietação, das perguntas”, diz. Ela ainda questiona: “O que seria a escola sem os alunos? Quando entro na escola vazia sinto que falta vida, falta alegria. Quero estar ali, naquele espaço, com os meus alunos. Saudades da rotina e da presença de cada um deles. O distanciamento deixou a saudade muito mais intensa. Percebo que, para muitos alunos, a distância tem ensinado a valorizar a escola, os amigos, os professores. Não vejo a hora desse reencontro com todos”, diz. Cadê a rotina? O Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas (IHGG) criou dentro do seu site um projeto chamado Sensibilidade da Quarentena que traz, em boa parte dos seus textos, as saudades que as pessoas andam sentindo. Um desses trabalhos é de Aline Antunes Zanatta, doutoranda da Faculdade de Educação da Unicamp e educadora museal no Museu Republicano Convenção de Itu. Ela destaca que sente falta de caminhar no Centro Histórico de Itu entre as camadas dos tempos que resistem na paisagem, observando os prédios construídos pelos trabalhadores e seus saberes e técnicas. “Como trabalho no Museu Republicano sinto falta de ver as crianças pequenas virem uma vez, voltarem inúmeras outras. Saudades de ajudar os visitantes a guardarem (antes das visitas às exposições) suas lembranças compradas nas lojinhas dos exageros da cidade. Sempre ficava torcendo para que daqueles lápis gigantes saiam grandes ideias”, lembra Aline. “Estou com saudades de encontrar semanalmente com o grupo mais fantástico de bordadeiras do mundo, chamado Utuguassú, à sombra do nosso pé de pitanga, no museu. Lugar em que elas habitaram para que suas memórias individuais fossem compartilhadas e tramada uma rede chamada memória coletiva. Saudade do sorvete artesanal de frutas e ervas na praça do Carmo, do Nirulas, de beber uma cerveja com as amigas e amigos no bar do Farias, ali no bar da esquina, que a gente nunca encontra uma mesa e cadeira para sentar, mas sempre um amigo para prosear”, diz. Ela complementa: “Tenho saudade de ver a cidade de perto, em movimento, respirando, questionando. Tenho saudade da vida, que por enquanto só vejo da janela”, diz Aline. Já a historiadora e pesquisadora da história da alimentação Eliane Morelli Abrahão também escreveu para a série do IHGG sobre suas saudades e reencontros da quarentena. Ela conta que seus estudos com livros, cadernos de receitas e cardápios passaram a ganhar a prática na cozinha e ela passou a visitar receitas de família ligadas à sua memória afetiva. “Fui buscar sabores que recordassem a minha infância”, conta Eliane. Depois de algumas experiências encontrou a receita de uma tradicional rosca recheada com uva passa e frutas secas que sua mãe fazia no Natal. “Durante o preparo da massa me lembrava das falas da minha mãe: ‘quando a bolinha subir pode terminar as roscas’. Eu era criança e adorava fitar a tal bolinha no copo d’água até ela subir”, lembra. Mas ela também sente falta da família, irmãs, sobrinhos, sobrinhas netas que estão crescendo e não está vendo, de bater papo, da convivência. “Essa ausência deles também me lembra de pratos que fazem parte da minha memória afetiva e que só eles fazem: a costelinha de porco que minha irmã aprendeu a fazer com a minha mãe e o pudim de leite condensado que por cima vai um suspiro. O sabor é divino! Família e alimento significam aconchego e trazem tranquilidade e carinho para o coração”, diz. Eliane também cita outras nostalgias: a de ir aos arquivos para pesquisar os cardápios e receitas e de viajar para ver as belezas do mundo.

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