“Será que você vai saber o quanto penso em você/ Com meu coração?” canta Renato Russo em "O Descobrimento do Brasil", faixa-título do disco que o grupo Legião Urbana lançou em 1993. Como objetos de sua ternura, o cantor parece referir-se a três nomes, que enumera no verso anterior: “A professora Adélia/ A tia Edilamar/ E a tia Esperança”.Voltei a lembrar-me dessa canção — e de suas referências autobiográficas — no último domingo, o primeiro sem a minha avó Maria.Como Adélia, Edilamar e Esperança, minha avó também foi professora — segundo meu pai, a mais benquista entre os alunos do colégio no qual lecionava em tempos longínquos, no Rio Grande do Sul. E não é difícil imaginar o porquê da empatia que provocava: ela combinava refinamento com polidez, simpatia e bom humor.Em meus tempos de criança, em Brasília, minha avó Maria também foi minha professora. Em um caderno de caligrafia, ela me guiava nos traços da letra cursiva que eu não havia aprendido nos primeiros anos de primário cursados nos Estados Unidos; também foi ela quem me desvendou os mistérios da divisão matemática (outra defasagem com a qual voltei ao Brasil) — só para mostrar, por meio de operações simples, que não havia mistério algum.E, para além do português e da matemática, foi ela quem me deu uma das primeiras lições de boas maneiras e civilidade: não jogar papel no chão, atitude que parece elementar, mas que, pelo visto, grande parte das pessoas falhou em absorver. Me lembro até do momento em que ela, suave e professoral, com aquela autoridade que só as avós parecem ter, sentenciou, definitiva, após me ver deixar cair um embrulho de bala sobre o carpete do apartamento: “Papel a gente joga no lixo”.Mas a grande lição que ela legou eu, confesso, ainda não consegui colocar em prática. A de encarar as coisas com otimismo, de não se deixar abalar pelos trancos que a vida dá, de colocar as coisas em perspectiva para ver que, finda a noite, sob a luz do sol as aflições e atribulações mostram contornos bem menos graves.Vó Ia, como a chamávamos, tinha um constituição franzina, encarquilhada pelos anos e por uma osteoporose que ela, teimosamente, nunca tratou. Mas essa casca frágil servia de abrigo para um coração — material e metafísico — e uma mente feitos de aço. Há até pouco tempo — ela já centenária — sua lucidez continuava a espantar a todos.Mas alguns baques são demais até para as avós encouraçadas. Primeiro, ela perdeu um filho, meu tio, coisa que absolutamente não está na ordem natural das coisas; não muito depois, lhe tiraram uma filha — como ela chamava sua nora, minha mãe. Essas perdas, que se somaram às outras que a vida impôs, foram, acredito, os golpes mais duros que ela sofreu. E os seus 101 anos de vida — completos em 13 de maio — começaram a cobrar seu preço.Ainda assim, minha avó se foi em um lento apagar de luzes. Aos poucos, o vigor de sua presença cedeu lugar a uma espécie de deslocamento deste mundo, como se as coisas fossem deixando de lhe despertar o interesse. Por fim, uma pneumonia, que é a sombra sinistra que paira sobre os velhinhos, uma semana de UTI (durante a qual seus sinais vitais permaneceram assombrosamente estáveis), e o desenlace, na madrugada de 19 de setembro.Despedi-me com um choro abafado, como quando enfiamos a cara no travesseiro e lamentamos ter perdido alguém que tínhamos na mais alta estima. Seu corpo foi cremado no sábado, em cerimônia na qual ela foi homenageada com música e palavras — entre elas, as que minha mãe havia lhe dedicado em poema, chamado "Instinto de Felicidade" (título que diz muito sobre como minha avó encarava a vida), que foi lido por meu pai: “Nessa manhã de julho,leves pinceladasde nuvens brancas,no azul do céu,preconizamque, apesar de tudo,tudo pode ficarmuito bem.”Sim, vó Ia, tudo vai ficar bem. Adeus. E muito obrigado.