ig-antonio-contente (AAN)
É a vingança um prato que se come frio? Até acho que esta é uma boa pergunta, principalmente pelo sabor literário que carrega. Devidamente personalizada, conduz a muitos caminhos. Nos velhos filmes de faroeste o tema aparece à exaustão, em inúmeros casos com duelo final entre vilão e vingador. Nas histórias passionais, homens ou mulheres traídos em situações várias ofereceram e oferecem farto material à imaginação dos escritores. E até recordo, dos meus tempos de repórter policial, certo caso de marido que encontrou a esposa na cama com o vizinho. No momento, limitou-se a fechar a porta do quarto e sair; para, dias depois, crivar de balas o Ricardão. Diante do delegado, justificou o acontecimento macabro: — Ora, doutor, eu estava com sede de vingança...
Mas nem só os seres humanos, ou até mesmo alguns animais, acertam desavenças. Era sobre isso que eu pensava ontem, a meditar aqui nesta ilha na foz do rio Amazonas que ora me acolhe. Pensava ao observar a ordem, a profunda ordem com que a natureza segue seu curso ao meu redor. E a vingança silenciosa, mas eficaz, que ela joga sobre aqueles que quebram sua milenar sapiência. Como tem ocorrido na Amazônia, especialmente no Oeste e no Sul do Pará; e em outros lugares do Brasil, como a Serra do Mar; onde a pesada mão do homem ainda burila cataclismos.
Imagino que em nenhum caso, como o vivido em Fordlândia, a natureza amazônica tenha se vingado de forma tão exemplar. Para quem não sabe do que se trata, explico: Fordlândia foi um projeto desenvolvido e financiado pela indústria automobilística Ford, entre os anos 20 e 30, às margens do rio Tapajós, afluente na margem direita do Amazonas, não longe de Santarém, Pará.
Ali Henry Ford que, à época, era talvez o homem mais rico do mundo, tentou desenvolver um plantio racional de seringueiras. Queria ter látex farto e barato para a produção dos pneus dos seus carros que rodavam em toda parte. A fim de implementar a coisa ganhou do governo paraense mais de um milhão de hectares e tratou, através de farta equipe, de colocar a floresta abaixo em boa parte da imensa gleba. Os gringos fundaram uma cidadezinha, considerada modelo, mas, modelo errado, com casas ao estilo norte-americano, para frio, construídas quase no equador. Eram verdadeiros fornos. Bom, para encurtar a história, os homens de Ford, que, aliás, nunca foi no projeto, semearam na selva devastada mais de 8 milhões de pés de seringueiras numa primeira etapa. Com o que os alienígenas não contavam é que a natureza estava atenta. E, no correr do tempo, silenciosamente, se vingou. Pois todas as árvores enfiadas indevidamente no solo foram, simplesmente, dizimadas por pragas. A cidade de Fordlândia sucumbiu, resultando que o industrial dos carros gastou em dinheiro de hoje mais de um bilhão de dólares inutilmente; simplesmente, rasgou a bufunfa. Bem feito! Aliás, quem quiser saber mais sobre o assunto pode ler o ótimo “Fordlândia”, do professor americano Greg Grandin, da Universidade de Nova York. A edição é da Rocco.
Pois bem, agora quero voltar aos íntimos pensamentos que me acompanham nesta ilha no delta do rio Amazonas. Vicejam, no meu absolutamente íntegro pedaço de terra, centenas de seringueiras. Não foram plantadas por ninguém, como por ninguém foram plantadas todas as árvores da espécie que, entre o século XIX e princípio do XX fizeram brotar as imensas fortunas do chamado Ciclo da Borracha. Cujos monumentos ainda visíveis do que foi a dinheirama produzida em função da “hevea brasiliensis” nativa, são os lindíssimos Teatros Rio Negro, em Manaus, e Da Paz, em Belém. Este uma quase réplica, extraordinária, do Scala de Milão. Carlos Gomes regeu lá.
Volto ao meu pedaço e aqui estão as seringueiras. Que se reproduzem sozinhas, da seguinte forma: as sementes vêm pela correnteza dos rios, igarapés, furos, paranás. Topando terra, nascem. A árvore que crescerá, ao chegar na época da produção, terá suas sementes literalmente explodindo a espalhar para o interior da floresta novas árvores que nascerão, levando sempre mais longe outras seringueiras. As minhas, são absolutamente saudáveis. De vez em quando, em acessos de ternura, caminho ao encalço de muitas, apenas para acariciar e beijar seus troncos. Aqui a natureza (como aconteceu na Fordlândia) não se vinga. Pois eu e ela somos cúmplices.