CECÍLIO

A vida alheia sem graça

08/11/2013 às 05:00.
Atualizado em 26/04/2022 às 11:50

Uma das mais excitantes diversões de todos os tempos — digo-o, pelo menos, de antigamente — era falar mal da vida alheia. Na realidade, tratava-se de um jogo consciente. Ora, se eu sei que vão falar mal de mim, falo, também, mal deles — esse era o, digamos assim, código de ética. Era o mexericar, fazer mexerico. E começou a perder a graça quando o mexerico passou a ser chamado de fofoca. Pois fofoca é diferente de mexerico. Só sabe disso quem aprendeu a arte de mexericar.Falar mal da vida alheia tinha lá seus requintes. Não se tratava de calúnia, nem difamação. Era, apenas, uma troca de informações, maneira de saber o que estava acontecendo com a vida dos outros, pois — repito e insisto — eles também falavam mal da vida da gente, mexericando. Era, realmente, uma arte. Que começava com algumas palavras-chave: “Você sabe da última...?” Ou: “Ih, nem queira saber...” Uma delícia.Todas as cidades tinham a sua “boca do inferno”, esquina ou local ou bar onde se reuniam grupos para mexericar. A mais famosa era a de Curitiba, mas ainda hoje não acredito nisso. Na minha terra, existia a “Prainha”, rua à porta de bares por onde era preciso muita coragem para passar. Pois inevitavelmente iria ouvir: “Está vendo aquele (a) lá?” E os segredos eram socializados.Minha turma — desde a adolescência até a maturidade — reunia-se num boteco na Rua do Porto, espaço de todos os mistérios, confidências e inconfidências, celebrações e dores de amores. Éramos oito amigos. E uso, tristemente, o verbo no passado por quase todos terem-nos deixado. E os que ainda ficamos perdemos o interesse por vidas alheias, tão expostas e sem segredos ficaram quase todas elas. Com cervejas, caipirinhas, lambarizinhos fritos, passávamos longas horas, semanalmente, atualizando-nos em relação à vida do próximo. Quem estava saindo com quem, quem traía quem, quem enganava quem, vidas pessoais, vidas públicas. Saíamos de nossos conclaves felizes de vida, bem informados e embriagados.Agora — com redes sociais, celulares — ficou sem graça. Aliás, o mundo está perdendo a graça. Como é possível viver sem mistérios, sem segredos, sem pelo menos algumas obscuridades? Quando está tudo às claras, fica monótono. É como a nudez. Ah! Como era empolgante conseguir ver, mesmo que de relance, o joelho de uma jovem. Era uma bênção. As moças mais espertas — ao se sentarem em bancos de jardim — fingiam descuidos e deixavam os joelhos à mostra por breves mas deleitosos instantes. Ora, qual a graça, agora, de a mulherada, quase toda, estar nua nas ruas? Por isso é que — com tantos véus e roupas — as muçulmanas despertam a imaginação e o desejo masculinos. E as freiras.Saber da vida alheia, bisbilhotar, mexericar exigia competência, muito diferente da espionagem política. Era na vida da pessoa que estava o interesse, que se satisfazia na sutileza do mexerico, da insinuação. Mas, atualmente, mexericar o quê, quem? E falar mal de quê e de quem, se está tudo disponível, mostrado, revelado, exposto?Ultimamente — sem meus amigos e sem boteco onde saber das novidades — descobri novos espaços para, pelo menos, saber da vida alheia, não mais em mexericos mas ao vivo e em cores. São as salas de espera de consultórios médicos, laboratórios, dentistas, filas de supermercados, de bancos, onde houver grupos de pessoas. Basta ficar atento. E eu, como não uso celulares, fico ouvindo o que o pessoal fala de si mesmo, dos outros, quase berrando sem dar qualquer importância a quem possa ouvir. Aliás, eles parecem nem saber que há outras pessoas ao lado ou que elas existem.Há poucos dias, entrei na sala de recepção de um medido, cumprimentei as oito pessoas que lá estavam e ninguém me ouviu e nem respondeu. Todas estavam com os celulares, algumas falando, outras jogando. Senti-me absolutamente solitário mas percebi ser uma oportunidade de eu ficar sabendo da vida alheia. E ouvi a mulher brigando com a modista que atrasara com o vestido da filha que ia disputar concurso de rainha sei lá do quê. E o empresário, xingando o fornecedor que não lhe entregara a encomenda, tijolos para a construção. E o comerciante que orientava seu empregado a entregar o pedido do cliente mesmo não sendo aquilo que ele escolhera.Lamento. Perdeu a graça e é uma tristeza. De que adianta a arte de falar mal da vida alheia se ninguém mais liga para isso? Se não mais existe o outro, falar bem ou mal não tem importância. “A vida é minha e faço o que bem entendo” — respondem as pessoas. Então, tudo bem. Perdeu a graça até mesmo falar mal do Paulo Maluf. E isso é, lá, viver com gostosura?

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