ANDRÉ FERNANDES

A testemunha e o homem bom

André Fernandes
17/04/2013 às 05:02.
Atualizado em 25/04/2022 às 20:04
IG-ANDRE FERNANDES (CEDOC)

IG-ANDRE FERNANDES (CEDOC)

Outro dia desses, enquanto presidia uma prosaica audiência de instrução e julgamento, um advogado perguntou para a testemunha se o autor era um bom homem. Intervi imediatamente, argumentando para o advogado que a dúvida era impertinente, porque não se tratava de um processo de canonização do autor. Ele insistiu. Cedi, porque as intenções do advogado ainda não estavam muito claras.

De repente, para minha surpresa, a testemunha atravessou outra pergunta: o que é um homem bom? O advogado, igualmente surpreendido, respondeu valendo-se de lugares-comuns, o que, naquela situação, resolveu o problema da defesa de sua tese no processo. Mas não a minha hesitação interior: o que é realmente um homem bom?

Bom está ligado à bondade, uma atitude ética fundamental. Creio que pouco serve o ensinamento sobre um assunto ético, se não é precedido pela experiência. Do contrário, o saber perde-se nos escaninhos da teoria. Se uma pessoa ainda não degustou a bondade, dificilmente irá aceitá-la racionalmente.

Há, digamos, uma sabedoria sem argumentos na práxis da vida humana, algo que se intui ou se percebe como bom, porque foi experimentado uma vez, foi vivido numa situação duradoura ou foi aprendido no seio do lar. Platão dizia que educar é ensinar a gostar daquilo que é bom, assim como para Aristóteles, quando escreveu suas ideias sobre a educação do desejo.

Por isso, temos alguma noção para caracterizar o homem que não é bom. Existe um homem mau. É o sujeito que vive soberbamente e num clima de rebelião sem trégua contra o mundo dos valores, do belo e do verdadeiro: é Alberich, anão e líder dos nibelungos, guardião do “tesouro do Reno”, na ópera “Anel dos Nibelungos”, do destacado maestro e compositor Richard Wagner.

Alberich espuma de inveja e de ressentimento contra o mundo e contra qualquer homem bom e feliz, nutrindo-se do ódio, como Caim. É hostil e quer envenenar o próximo com a peçonha de seu mal. Iago, símbolo da inveja em relação ao mouro de Veneza mais conhecido da literatura, faria um bom dueto com nosso nibelungo...

Há também um homem impiedoso. Duro, frio, sem qualquer pendor para a comiseração alheia, surdo para qualquer súplica e para quem os outros nada mais são que peças no grande tabuleiro de xadrez da vida: meras coisas a serem dispostas por ele ao gosto de seus interesses e estratégias, porque, nele, não há espaço para o amor ou a piedade.

É o Conde de Monte Cristo, do homônimo romance do escritor Alexandre Dumas, um homem bom a quem roubam a liberdade e o amor. No cativeiro, trava amizade com um abade, que lhe oferece ajuda para a fuga. Anos depois, regressará coberto de riquezas e vingará cada um de seus algozes impiedosamente, para além de toda a lei humana ou divina.

Há, ainda, o homem indiferente. Não tem o coração duro do impiedoso e nem derrama sua bilis apática nos outros, mas vive absorvido em seu mundo egocêntrico, concentrado em si mesmo, sem espaço para qualquer ação externa que possa emocioná-lo intima e profundamente. É Mersault, o homem solitário, sem afeto, incapaz de chorar a morte da própria mãe e protagonista de “O Estrangeiro”, famoso romance do filósofo Albert Camus.

Assim, pelo avesso destes personagens, podemos ver os traços essenciais que a bondade acusa: liberdade interior, desprendimento, superioridade do amor, espírito de serviço, abertura ao mundo e aos outros, sensibilidade para os valores e um certo calor interior. E, por carregar consigo tantos valores morais, podemos dizer que a bondade é a irradiação daquelas excelências morais.

Nesse processo de irradiação, o homem bom atinge a expressão mais pura e típica do caráter geral do ser ético e, ao mesmo tempo, alcança a inegável realidade do outro. Agora, depois de passear pela música, literatura e filosofia, posso responder à inusitada pergunta da testemunha. E num tom poético, porque, afinal, não estou numa audiência: o homem bom é aquele cuja bondade não lhe pertence, mas àqueles que precisam dela. Com respeito à divergência, é o que penso.

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