Campineira saiu da roça,se desdobrou nos treinos e conquistou o mundo quando já era atleta veterana
Filha de lavradores, Odete nasceu na roça e, tentando melhorar de vida, se mudou para a cidade ainda mocinha. Trabalhou de empregada doméstica um tempão. Também foi merendeira em creches da Prefeitura. Tudo o que ganhava, investia na sua grande paixão: disputar provas de atletismo. A moça virou destaque nas pistas e se tornou supercampeã no arremesso do disco, defendendo Campinas nos Jogos Abertos do Interior e nos Jogos Regionais. Bom, quis o destino que Odete Valentim Domingos ficasse famosa depois de madura. Ela nunca abandonou o esporte. Faturou títulos mundiais no disco quando disputava a categoria master. Ainda hoje, aos 80 anos de idade, ela é professora de educação física dos alunos da Escola Preparatória de Cadetes do Exército. (EsPCEx), e depende do salário para se manter. Reconhecimento Apesar da carreira internacional cheia de títulos — e do enorme respeito dentro da comunidade esportiva —, Odete nunca conseguiu guardar dinheiro. Só hoje ela, emocionada, diz que quitou a casa própria. Antes, viveu pagando aluguel. A dona mora em um imóvel simples, de seis cômodos, no Jardim Flamboyant. Na fachada, revestida com tijolinho à vista, chama a atenção as esculturas de animais espalhadas pela garagem. Quem entra na sala, no entanto, fica surpreso com a decoração interna: há tapetes, vasos, cortinas, máscaras africanas, imagens de santos católicos e de orixás, varetas acesas de incenso, carrancas. É uma mistura sensacional de símbolos religiosos de uma mulher que nasceu católica, se apaixonou pela cultura negra, se encontrou no espiritismo. E um dos dormitórios, nos fundos, foi reservado para as estantes tomadas por troféus e fotografias da carreira. Também há uma surpresa no quintal amplo. Odete mantém seis canis. E a cachorrada divide o espaço com maritacas e papagaios. Viúva, ela só conta a companhia de Nenê, moça que ajuda nos afazeres domésticos. Mas Odete nem precisa sair de casa para se divertir. Passa o dia todo por ali, rindo a valer, conversando com a bicharada e gargalhando. Não quer outra vida. A carreira Odete era filha de José e Júlia, um casal de lavradores que vendia legumes na feira. Seu talento para o esporte foi descoberto por Argemiro Roque, atleta que treinava as equipes do Regatas. O mentor, aliás, se tornaria seu companheiro, pelo resto da vida. Foi o Roque quem exigiu, por exemplo, que ela se dedicasse aos treinos. No primeiro teste no clube, por falta de roupa adequada, ela mesmo cortou uma saia velha para disputar a corrida. Treinava à noite, porque passava o dia todo trabalhando nas casas de família. Às vezes ia de barriga vazia. Dormia de cansada no chão dos ginásios, quando saía para competir. Riqueza de causos A fortuna que acumulou são os causos. Odete lembra, por exemplo, que seu calçado estourou quando ela participava de uma copa latina do disco, em meados do século passado. Ela saiu desesperada a procura de sapatilhas, mas ninguém lhe arrumou uma nova. Resultado: a atleta tapou os rombos com esparadrapo e competiu assim mesmo. Ganhou a prova e emocionou todo mundo. Uma competidora italiana, tocada, tirou as próprias sapatilhas dos pés e lhe deu de presente. Lágrimas gerais. Ah, teve outro episódio inesquecível. Em 60, quando a Campinas sediava os Jogos Abertos do Interior, a Odete contundiu o menisco durante o treino e foi parar no hospital. Teve a perna imobilizada. Mas a mulher não se conformou. Ela arrancou a tala, compareceu ao ginásio, disputou a prova com o joelho enfaixado e ganhou mais uma medalha de ouro para Campinas. Grandes marcas na maturidade Foto: Arquivo pessoal Odete (à esq.) recebe abraço de amiga da Seleção Brasileira nos anos 50 Mas Odete nunca disputou uma Olimpíada. Como ela via o tempo passando, resolveu fazer educação física e ser professora para ter uma profissão. Ah, sim, quando se matriculou, tinha passado dos 40 há um tempão. Pois o destino prega suas peças. Foi na maturidade que a dona começou a colecionar as grandes marcas. Ninguém, na sua idade, arremessava o disco tão longe. Ela faturava toda prova que disputava. Só mundiais foram cinco títulos. Sua melhor marca no disco foram 53 metros cravados. A mulher virou um símbolo do atletismo campineiro. Argemiro Roque, o companheiro, se foi em 94. Eles viveram juntos mais de 40 anos. E a Odete, saudosa, fala toda orgulhosa. "Eu tinha 16 anos quando o conheci. Nos juntamos quando eu tinha 18. Ele me criou, me treinou, foi meu primeiro e único namorado." Filhos, nunca tiveram. É que o Argemiro já era pai de cinco, do primeiro casamento. Ah, ela também sente um aperto no peito quando lembra dos pais e dos irmãos. Já morreram seis dos oito filhos do casal de lavradores. Ela só tem uma irmã viva. Mas não reclama, nem teme a morte. Sente uma dorzinha aqui e ali, por conta de um desgaste ósseo, mas não toma remédio algum. Está saudável, bonitona. E diz que tem uns segredinhos para viver bem: come peixe, adora uma cervejinha e tem muita fé. "A vida é difícil. Mas toda lágrima e todo esforço valem a pena. O carinho que sinto das pessoas não tem preço" , fala. Frustração Odete Valentim Domingos, que brilhou nas pistas campineiras antes de ganhar o mundo, se diz frustrada com os descaminhos do esporte por aqui. Ela fala que Campinas se cansou de ganhar os Jogos Abertos, e era favoritíssima em todas as edições. Hoje, fala, a cidade é coadjuvante nas competições. "A gente precisa de um novo modelo, que vá buscar talentos nas comunidades da periferia. Os bairros estão cheios de meninos e meninas que sonham com incentivo para treinar, representar a cidade. A cidade iria afastar a garotada das drogas e da criminalidade" , diz. "Seria uma ação social que nos renderia muita medalha de ouro."