Promissora: filha de uma família que prega a gastronomia responsável, Bella Masano valoriza os ingredientes frescos
Desde o final da década de 1980 e, portanto, antes da “ecorrevolução” que chegou recentemente com mais força à cozinha moderna brasileira, a família Masano pratica os conceitos do slow food e da gastronomia responsável no tradicional restaurante Amadeus, em São Paulo. Não por preceito, mas propósito. Ostras, mariscos e vieiras, estrelas dessa “esquina do peixe” que já honrou bodas de prata, são cuidadosamente criados na Florianópolis de clima ameno, águas rasas e repletas de nutrientes para chegarem frescos, diariamente, à bancada da chef Bella Masano.
À frente da brigada há uma década, ela, que é apontada como uma das jovens cozinheiras mais promissoras, pondera sobre a importância de zelar pela qualidade dos produtos e aproximar-se das cadeias produtivas regionais. Para isso, tem percorrido o País e ajudado a divulgá-lo no Exterior, de boca(do) em boca(do). “Se, por um lado, atendemos a uma demanda exclusiva do restaurante com essa criação que sustenta várias famílias, também fazemos questão de comprar camarões brancos diretamente de uma comunidade de pescadores daquela região. Entendo que é preciso enxergar o fornecedor como parceiro para que ele, o lugar onde vive, os clientes e o restaurante ganhem”, diz. Em 2011, ela falou sobre o tema no Mesa Tendências, congresso internacional de gastronomia.
Ok, sabe-se que Santa Catarina é, hoje, o maior Estado produtor de ostras do Brasil. “Mas, quando meus pais (Tadeu e Ana Maria Masano) resolveram colocar um balcão de ostras ao ar livre no restaurante, iniciativa que creio ter sido pioneira em São Paulo, boa parte do produto vinha de longe (até do Chile). Depois, de Cananeia”, lembra Bella. Mérito dos caiçaras paulistas, que divulgaram a joia do mangue capaz de enlouquecer os gourmets.
O sucesso do molusco foi tanto que, no começo dos anos 90, os Masano se aproximaram do pesquisador Carlos Rogério Poli, da Universidade Federal de Santa Catarina, que encampara pesquisa sobre o cultivo de ostra-do-pacífico. Desde então, é das redondezas da Baía dos Golfinhos que provêm as “pérolas” do Amadeus. “Salvo em algumas épocas e durante festivais temáticos, a maioria dessa nossa matéria-prima vem de Florianópolis”, pontua.
Ao sabor das marés
Antes desse fisgar e abrir de conchas, porém, o menu do Amadeus era completamente outro, e receitas familiares de base ítalo-francesa ditavam mais a levada do fogão do que a maré. Clássicos se perpetuaram por honra à afável história da família, amalgamada à do restaurante e recontada em menu especial no 25º aniversário, comemorado ano passado junto a Celso Freire, Flávia Quaresma, Daniela Martins e outros chefs.
Quando se dá conta de que a casa, hoje, é tida como expoente entre as de frutos do mar, Bella analisa os nós, tranquila: “Quem dita o ritmo das minhas criações é a maré. Não sei o que ela vai oferecer ao pescador. Tenho de me adaptar ao que é natural e extrair o melhor do meu produto, com delicadeza”. Nesse ponto, considera que o respeito às épocas de defeso dos produtos e outros assuntos relacionados à pesca e à aquicultura merecem mais atenção. E enxerga um mar de possibilidades à frente.
“Por que não explorar novas espécies? Por que não respeitar a sazonalidade e, com ela, aprender a testar e a introduzir novos sabores? A pesca de arraste, por exemplo, é um problema, bem como o destino que se dá ao que se chama de lixo (inclui espécies/produtos que não serão aproveitados). Acho que nossa responsabilidade como cozinheiros e donos de restaurante começa ao fazermos melhores escolhas a cada dia.”
Aí volta os olhos ao começo da lida. Revela que quase nada tinha a ver com gastronomia década atrás, exceto o fato de ter crescido num restaurante que considera seu “irmão caçula”. Teimara ser médica, um sonho desencantado. Graduou-se, então, em turismo (Universidade de São Paulo – USP), hotelaria (Senac-SP) e tornou-se mestre em planejamento urbano e regional (USP), por ser afeita a hospitalidade e planejamento turístico. Beirou o fogão sem pretensões e foi estudar na conceituada parisiense Le Cordon Bleu.
Na volta ao Brasil, deu meia dúzia de pitacos no menu do Amadeus. Subverteu a lógica dos pontos de cocção e, de cara, propôs vieira bem malpassada para os cogumelos enokia que substituiriam os morilles franceses secos de um prato. A família achou que aquilo não ia dar muito certo. Mas ela acertou o ponto a ponto de ficar. “Até o dia em que me vi trabalhando na cozinha, nunca tinha pensado que estaria ali, coordenando uma equipe”, entrega.
“Ao contrário do que acontece com as carnes, nunca vi alguém perguntar ao cliente em que ponto ele gostaria que fosse servido seu peixe. Nos últimos anos, temos mudado nesse sentido. O que tenho feito é brincar com sensações e observar reações. Tenho, por exemplo, uma vieira levemente defumada a frio que passa segundos na frigideira e resulta diferente de uma que foi marinada, selada ou levada ao forno. Por que não experimentar todas e descobrir do que se gosta?”, provoca, como quem anuncia um novo movimento.
Gadgets de cozinha como forno combinado, termocirculador e termomix só foram introduzidos no Amadeus há dois anos, para que se execute as receitas com maior rigor e regularidade.
Turismo com gosto
Bella se diz especialmente encantada pelas frutas nacionais. Se está para receber a visita de um cozinheiro de qualquer banda, lista suas encomendas – e ai do camarada se chegar de mãos vazias. Se vai a campo, como agorinha, embalada pelo Festival-Ver-o-Peso da Cozinha Paraense, volta com as malas cheias de novidades. “Não tem jeito. Sou do tipo que vai ao mercado comer peixe com açaí no café da manhã. Tive a sorte de aprender muita coisa sobre produtos amazônicos com o saudoso chef paraense Paulo Martins. Sou casada com um goiano, por isso tenho mais acesso aos ingredientes do cerrado e do Centro-Oeste. Tudo me interessa”, exemplifica.
Do glossário do comer que se renova, pinça verbetes para servir em menus degustação, em que propõe viagens pelos sabores e aromas. Se vê abertura no cotidiano do à la carte, introduz novos ingredientes aos comensais. “Procuro falar das tantas riquezas espalhadas pelo País. Brinco com nossos regionalismos. Podemos, sim, fazer turismo com gosto estando sentados à mesa.” Bella, parece, está em casa. E fazendo tudo o que gosta.