ZEZA AMARAL

A paz da solidão

13/05/2015 às 23:00.
Atualizado em 23/04/2022 às 13:45
ig-zeza-amaral (AAN)

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Nasci onde fui gerado: na cama de meus pais. Vieram a parteira e o meu avô com o canivete afiado a cortar o meu cordão umbilical - lembrança que hoje está comigo, a cicatriz primeira; além do canivete de herança que me coube de seus pertences, ainda hoje guardado na mala que faço quando parto em viagens. Tenho um violão afinado em trastes do luthier Luiz Vasques, senhor das comas, da nota exata, da mais aguda até a nota grave, perfeita em sons naturais, digna e apaixonada frequência musical sem regulação física, apenas compreendida pelas ondas sonoras de tímpanos musicais de quem bem conhece o ofício da música dos pássaros e dos homens. Meu violão - que antes pertenceu ao virtuoso violonista João Alexandre - tem a alma de todas as canções, de todos os músicos, em escalas menores e maiores, e tento eu descobri-los todos em suas menores intenções, que sãos as maiores intenções que os levou ao supremo das notas que soltam em suas canções, quer seja em sulcos de antigos vinis, quer seja no silêncio abissal do CD, sem chiado, chato apenas pelo silêncio tecnológico, frio abissal que bem percebeu o saudoso Jota Toledo, mago das cores e sombras das paletas e câmeras fotográficas. Foi ele o primeiro a comprar um aparelho de execução de CD: “Eis o som sepulcral dos homens”, disse ele, ao exibir a sua nova geringonça tecnológica que executava uma sinfonia de Ludwig van Beethoven. Segundo ele, a arte precisa mais de barulho do que silêncio. Sábias palavras... Fiz a juventude em serestas pelas ruas do Cambuí, violão no peito, e, bem me lembro de uma delas, quando o moço Tati apareceu com um violão de sete cordas, de precisa baixaria, e que levou a minha percepção musical aos acordes dissonantes. Dez anos depois, por volta de 1974, Tati apareceu na Adega Florence com a sua sincera harmonia. Eu seguia a toada das novidades da bossa-nova e ele vinha fiel ao contraponto do chorinho, em evoluções de baixo, harmonizando os médios do violão do Alfredinho e os agudos do cavaco do menino Pezão, que solava clássicos chorinhos brasileiros. Não sei mais por onde anda a alma do meu País e tampouco do que restou do sete cordas do Tati, do violão do Alfredinho e do cavaquinho do Pezão - sem contar que estou em memória enlutada por não lembrar da rapaziada do ritmo, da sustança do pandeiro, do afoxé e contra-surdo. E sigo assim na procissão existencial de exigir respeito aos meus ouvidos, nem tanto aos políticos (que isso se resolve facilmente no Legislativo Federal, segundo interesses de seus membros, é claro), mas, sobretudo, à maioria dos professores de nossos estudantes que, a bem saber, não sabe onde enfiar uma crase, uma vírgula, um ponto e vírgula, um ponto e parágrafo, mestres que não são dos verbos regulares e irregulares e ditados, apenas profissionais ideológicos dedicados ao desserviço da Educação do Estado, mestres que são em proselitismo ideológico que bem escondem suas incompetências acadêmicas.Não há mais bares e boêmios; não há mais ninguém a carpir o som da madrugada, a fazer um campo de canções, de recitar versos de Fernando Pessoa, Vinícius, Manuel Bandeira, ou de lavra própria, do cantar por cantar, de apenas viver pelo que se tinha naquele momento, de voltar a pé para algum lugar, de comer pastel na feira e, é claro, de cumprir os pecados da ressaca e, vida natural, a solidão profissional de mais um dia de trabalho. Não tenho reclamo algum da vida que levo. Sempre faço, e fiz, o que gosto. Ganho a vida com dignidade e não saberia vivê-la de outro modo, visto que a minha vida também pertence aos meus amigos, aos meus filhos e parentes - e todos eles são gente de honesta atitude, de honestos atos cívicos, o que muito comove e conduz as aflições que possuo para o enfrentamento do futuro que sempre está batendo na minha porta. Minha mãe orava pelos seus e filhos de suas vizinhas. Dizia ela que a oração pertencia a todas as pessoas, sem distinção de valores morais. Nesse segundo domingo de maio, lembrei-me dela, da sua voz firme e serena, dos seus quase trinta anos de solidão de lençol e travesseiro. E assim abracei a matriarca da família dos Ribeiro, Dona Emília Nogueira Amaral, minha sogra e xará de sobrenome, em completos noventa e quatro anos de idade. Ela também está em solidão de lençol e travesseiro. E não reclama de nada. Apenas resmunga que está com saudade do velho companheiro e segue em frente. E assim digo que são abençoadas todas as pessoas que envelhecem em suas boas lembranças. Bom dia.

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