PADRE VICTOR ALMEIDA

A normose do ver

24/11/2020 às 07:34.
Atualizado em 26/03/2022 às 21:40

Nas Sagradas Escrituras temos inúmeras passagens relacionadas com o tema do "ver". Além do sentido costumeiro, este verbo tem um significado que se aproxima do "conhecer". O Livro do Êxodo exemplifica bem essa relação em 3,7: "Eu vi a miséria do meu povo. Ouvi o seu clamor e conheço os seus sofrimentos". Nos Evangelhos, Jesus sempre que tem compaixão por alguém, vê a situação na qual a pessoa se encontrava. Ou seja, o ver está mais relacionado à experiência interior. Aparece conectado ao exercício ocular, mas também das percepções íntimas. Se valendo do hebraísmo bíblico, o ver parte "do coração". Isso é exemplificado na narrativa do livro do Êxodo 3,9, quando do sofrimento dos israelitas na escravidão no Egito: "o clamor dos filhos de Israel chegou até mim, vejo a opressão dos egípcios". Ou em 9,12 "o Senhor endureceu o coração de Faraó, e não os ouviu". Nos Evangelhos Jesus sempre antes de manifestar sua compaixão, vê aquele que sofre. Assim ocorre com a viúva de Naim (Lc 7,13); com o bom samaritano (Lc 10,33); com o pai misericordioso (Lc 15,20); nas multiplicações dos pães (Mc 6,34; 8,2). Um relato que revela profunda densidade de tal sentimento divino é a narrativa da chamada tempestade acalmada: Mc 6,45. É descrita também por outros evangelistas, porém Marcos chama à atenção pela riqueza de pormenores: era um fim de tarde, Jesus obriga os discípulos a subirem no barco e a irem antes dele para a outra margem, enquanto despedia a multidão. Depois, afastou-se ao monte para orar. As horas se passaram. Jesus estava em terra. A barca era agitada por ventos contrários, pelas ondas do mar e pelo cansaço das horas navegadas na escuridão e incerteza da noite. Porém, o relato diz que o mestre vê. Vê o cansaço, vê as contrariedades que passava a barca e vai ao encontro andando sobre as águas. Mais do que fazer perguntas ao texto, como: será que tudo aconteceu do modo como está descrito? Como pode à noite e à distância Jesus ter conhecimento do que acontecia com um minúsculo barco de discípulos amedrontados por uma tempestade? Devemos centrar a atenção no que está nas entrelinhas: O Senhor Vê. Aí que reside a beleza escondida no texto. O autor sagrado nos diz que nada é escondido aos olhos de Deus. Mesmo à distância compartilha do sofrimento dos discípulos que estão longe a enfrentar dificuldades. Aos olhos do mestre nossa dor é sentida. Deus não sofre de normose. Isso mesmo. Normose acontece quando somos adaptados a um sistema no qual somos incapazes de contestar o sofrimento do outro. Tudo se torna normal. A aflição do outro não pode se tornar algo corriqueiro, o qual parece não ter relações comigo. Os acometidos de normose perdem a capacidade de empatia, isto é, entender que às vezes o que não dói em mim pode doer (e muito) no outro. Ou seja, a normose atinge nossa capacidade de ver o sofrimento do meu semelhante. O relato mostra que Jesus não achou normal a aflição do outro. Foi caminhando ao encontro da barca. O restante da narrativa todos conhecem... A normose é uma patologia do olhar, mas que revela uma esclerocardia, uma dureza de coração. Pessoas acometidas pela normose podem tratar com naturalidade uma falta de energia que acomete um estado por mais de 18 dias. Atacados pela normose não sentem indignação e negam que exista um desmatamento acontecendo no Pantanal. Pessoas com o vírus da normose negam o mal da CoViD19, não sentem repulsa ao ver um homem negro ser espancado e morto dentro de um supermercado. Não têm aversão ao racismo existente há mais de trezentos anos no Brasil. É preciso dar um basta! O olhar de Jesus nos ensina a termos olhos que veem além. Desvencilhando-nos do vírus da normose. Victor Silva Almeida Filho, sacerdote na Arquidiocese de Campinas, assessora cursos de formação cristã. É formador do Seminário Propedêutico e membro da Comissão de Formação do Seminário Arquidiocesano.

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