ZEZA AMARAL

A mulher dos bichos

06/02/2014 às 05:00.
Atualizado em 26/04/2022 às 22:01

Porque estou enjoado de levar o meu barco neste mar de tantas dúvidas e incertezas, vou contar uma história de adeus, belamente triste como são todos os momentos de adeus.Naquela noite não fazia frio e nem era dia de fazer amor. Ele apareceu no apartamento e quando a porta abriu ele ficou olhando-a como se ainda estivesse fechada. Sob o batente, a mulher espantou um arrepio com um pequeno estremecimento, engolindo, inutilmente, um coração entalado na garganta.Havia mais de 20 anos que se conheciam. Ele costumava levar serviço para o apartamento da namorada, enquanto ela ficava tricotando toalhas de mesa e dando algumas espiadelas na novela.A rotina só era quebrada quando a temperatura baixava. Daí dormiam juntos, o que dava a ela a sensação de estar casada. Ficou neura. Diariamente lia todos os boletins meteorológicos, torcendo por uma eventual massa de ar frio.Naquela noite de segunda-feira, morna, quando ouviu os três toques curtos na campainha, levantou-se curiosa para saber quem era e teve um terrível pressentimento ao ver o namorado estancado à porta, tão inútil quanto um mamute.Depois de receber um beijo rápido no rosto, que lhe acendeu as dúvidas, foi à cozinha e esquentou o café em banho-maria, esquecedendo que ele detestava café requentado. E de novo um arrepio caminhou por entre suas rugas ao vê-lo beber o café já velho, sem prazer e sem reclamo.No apartamento, apenas o som da televisão e os ruídos habituais de um prédio, uma criança nova chorando, alguém ouvindo um bolero, uma porta batendo, um interfone tocando...Ele encostou-se no sofá e agarrou o teto com os olhos. Ela, com a boca entupida de perguntas notou que ele estava usando uma nova colônia, meias novas, e até o vinco da camisa estava diferente. Vez ou outra, os olhos se cravavam e ela tentava desviar como alguém que tenta tirar uma teia de aranha da pálpebra. Hora e meia depois, ele se levantou para ir embora. Ela ainda esperou uma palavra. Qualquer palavra. E não houve palavra nem beijo e nem abraço. Simplesmente ele abriu a porta, virou-se para ela, apoiando a mão no batente, olhou-a profundamente e desceu rapidamente pela escada, sem esperar pelo elevador.Naquela noite não fazia frio, mas mesmo assim a mulher saiu de casa agasalhada, recolhendo gatos e cães vadios pelas ruas do Taquaral...Bom dia.

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