ig-zeza-amaral (AAN)
Seja a mulher apenas o que o homem deseja e mesmo assim será bela em sua tristeza de se dar a quem ela bem sabe não merecer cuidados de mãos e olhar enternecido. Lamente-se o homem dessa mulher porque somítico e tosco de galanteios, sem-modos à mesa, de urina barulhenta e suor de cerveja.
Seja a mulher devassa e mais casto e elegante será o homem que a terá por uma noite ou bolero, e também a contemplá-la com rosas das mais perfeitas e panos dos mais delicados urdumes.
Seja ela morena e quererá cabelos flavos; seja ela o contrário de tudo o que homem pensa entender, pois a lógica não apaixona senão o homem tolo que a vê com o seu disfarce de cremes, perfumes, tinturas e panos leves.
Seja o homem cuidadoso em folhear as contradições da mulher para não provocá-la em sua indiferença; mesmo que ela seja a mãe de seus filhos, dela terá o homem apenas o seu ventre, a sua pele cada vez mais cansada, nunca os sonhos que ela não guarda por secretos, mas para protegê-los da insignificância de quem não os merece.
Não é a mulher senão a soma de tudo o que a cerca no momento em que se banha, seja no mar, seja no banho de canequinha. Quando nua, veste-se de luz e aromas; quando vestida, revela uma prometida nudez efêmera ao homem que a vê cruzando uma avenida ou ajoelhada em uma ermida.
Contemplar a mulher é antes de tudo pecar sem pecado; e pobre do homem que dela não se apaixona, um segundo que seja, e por ela se sacrifique em pira de fogo-fátuo, pois elas são tantas e todas merecem pequenas e repetidas paixões.
Seja abençoada a mulher que carrega rugas e madeixas brancas em seu corpo lento, ao lado do companheiro de boas e apaixonadas lembranças; que a velhice está no olhar do homem ainda jovem e descuidado; que nada mais é de comovente elegância a mulher exibindo a vaidade do tempo vivido e, melhor ainda, maturado em paixão.
Seja o homem, enfim, delicado com a mulher que o abandona aos seus descuidados, pois, é certo, são tais coisas que provocam adeus em cartas, bilhetes, conversas e telefonemas; e que a mulher nos seja paciente quando não consegue nos fazer entender que a sua traição não passa de um ato de lealdade ao novo amor.
E que mais sejam abençoadas as mulheres sem-canção, ou sem-poema, humildes e anônimas em seus afazeres cotidianos, mas nem por isso incapazes de inspirar rimas e melodias, e até mesmo guerras e crimes passionais, sem contar as que derrubam ministros e chefes de estado.
Diferentemente das mulheres ousadas, das que quebram os tabus de seu tempo, a mulher do dia-a-dia, que banha seus filhos e os manda à escola, que prepara a roupa da família, que aguarda o marido chegar do trabalho, a canção que ela desperta se revela quando ao bardo é dado um momento de observá-la secando os cabelos ao sol da tarde ou retocando o batom enquanto aguarda o lotação.
E nada, também, mais inspirador do que admirar os olhos maquiados da balconista da loja de cosméticos, sabendo que ela mora mais longe do que os seus sonhos de modelo de capa de revista ou passarelas internacionais, mas nem por isso menos bonita e real, ao alcance das mãos de um namorado suburbano.
Há em cada esquina da cidade uma profusão de canções e poemas a ser lido e cantado. À mulher que carrega sacolas de supermercado o poeta bem poderia dedicar odes ao elegante equilíbrio que ela mantém quando sobe no traiçoeiro degrau do lotação. São centenas delas, todos os dias, enfeitando o cotidiano da cidade, poemas que aguardam poetas atentos.
E o que dizer da mulher que varre a cidade? Ora, ela carrega em seu semblante tudo o que necessita um poeta moderno para fazer um épico de todas as aventuras da humanidade, desde que ele consiga vê-la, é claro, como uma Penélope que borda a sujeira das ruas com a sua vassoura, pacienciosa e esperançada, aguardando o seu Ulisses voltar do botequim.
Enfim, a mulher pode tudo. Até mesmo se apaixonar por um homem, o que é um dos seus melhores mistérios.