Pode o amor atingir as pessoas como uma carga elétrica, como um raio? Certamente que sim, uma vez que foi justamente isso que aconteceu com Paduossa. Estava ele num churrasco em Joaquim Egídio quando Marchília entrou. Bastou colocar os olhos sobre ela para que sentisse, nas entranhas, algo que mexeu com cada uma das peças que por lá existem. Com as mãos trêmulas apontou, perguntando de quem se tratava. Ouviu o nome, para logo fazer o pedido, com tom de apelo, de súplica:— Dá pra me apresentar?Isso de fato ocorreu, com impacto que superou todas as expectativas do rapaz. Pois a linda criatura não somente se desmanchou em sorrisos, para logo indicar, com a sutileza que só as belas guardam, que a cantadinha seria bem recebida. Ao final da reunião de amigos à sombra das árvores, os dois saíram de mãos dadas.O resto sucedeu como de praxe, como se seguisse roteiro previamente escrito. Certamente, logo diriam os mais afeitos às coisas do imponderável, pelo destino. Que, segundo velho dito inglês, é, sempre, nesta vida, o caçador.Foi no segundo encontro. Estava o casal na pausa pro cigarro com as costas apoiadas nos travesseiros, quando ele viu a pequena cicatriz. Abaixo do ombro esquerdo, acima do seio. Olhou quase longamente a imaginar o que a poderia ter causado. Talvez, até, tivesse passado pela sua cabeça perguntar. Todavia não o fez, sabe-se lá se por imposição de mais uma sutileza do destino. Que reservou nova surpresa em papo que o apaixonado teve dias depois com uma amiga de Marchília num ocasional encontro no Café Regina. Após se informar sobre o andamento do namoro, a fulana diz:— Que bom que não ocorreram sequelas.— Sequelas? Do que?— Do tiro que a Marchília levou. Puxa, no peito, bem acima do coração...O susto foi tamanho que caso estivesse de pé Paduossa teria precisado se apoiar em algo para não tombar. Mas como ali mesmo, no breve instante, se implantou na cabeça dele que a namorada fora personagem de um caso passional, abreviou o papo abruptamente. E sem perguntar mais nada saiu para ir sentar num banco no Largo do Rosário.Lá, com os pombos a bicar o chão a seus pés, o rapaz caiu na real: Marchília, de fato, era uma criatura lindíssima. E a inesperada informação de que levara um tiro no peito fez com que se criasse na cabeça dele os contornos de “femme fatale” da moça com quem vinha saindo. Já a imaginava a provocar tragédias alimentadas por ciúmes trágicos, ou até suicídios de pessoas que, não vendo correspondidos seus anseios amorosos, optaram por cometer os chamados “tresloucados gestos” diante da beldade.Ao se preparar para encontro com a fulana, à noite, Paduossa guardava no coração uma espécie de orgulho por ter conquistado alguém com capacidade de provocar reações extremas; mas também densa, espessa curiosidade por conhecer detalhes do sujeito que tentara mata-la, certamente naufragado diante da beleza que não conseguira domar, como ele mesmo parece que vinha conseguindo. No fundo no fundo se sentia vitorioso, com a inesperada certeza de que amansara uma deusa que tinha todos os homens da cidade a seus pés.Quando Marchília entrou no apartamento do rapaz ele mal respirava. Continha-se, pois seu desejo era arrancar de uma vez a roupa que cobria a fulana; não para satisfazer desejos ou ampliar prazeres, mas sim para cravar os olhos novamente na marca acima do seio esquerdo, abaixo do ombro.Pintaram músicas e drinques. Depois, caídas sobre o tapete as peças do vestuário, Paduossa, com a pontinha do dedo, tocou na pequena cicatriz; perguntou o que era aquilo:— Ih — ela baixou os olhos — nem te conto...A frase provocou calafrio que subiu da ponta dos artelhos do moço até o último fio dos seus cabelos. Com jeito, com tato, insiste que ela contasse, para ouvir de sua própria boca a história do apaixonado que, por amor, tentou matá-la. Marchília suspira e, sentando na beira do colchão, cicia:— Você lembra daquele assalto ao banco na Glicério, no mês de dezembro? Uma bala perdida pegou no meu peito...Trêmulo ele baixa o copo na mesa de cabeceira, subitamente arrasado. De tão decepcionado, teve certeza de que vivia, ali, o ultimo encontro com a linda mulher. Que voltara, repentinamente, a ser comum. Como personagem, afinal, de episódio tão repetido no Brasil que se tornou relativamente brega...